O desaparecimento dos romeus.

Toda manhã é a mesma coisa. Cadê os romeus? Só têm julietas...

No setor de atendimento de uma pequena prefeitura, as demandas dos munícipes se materializam em processos. O que dá liga àquele monte de papel são os romeus e as julietas de plástico. Aposentaram-se os metálicos, pois estávamos tendo profusão de concessões de licenças médicas por cortes provocados pelo manuseio daqueles metais.

Quando a ata de material de escritório se findava, todas as Secretarias estimaram seu consumo de romeus e julietas necessário para um ano de ata de registro de preços.

_ Estava tudo calculado. A vencedora da licitação não está cumprindo com a ata, mandando-nos apenas julietas. – Bradou Verônica, uma morena viçosa, de dentes branquíssimos, cabelos encaracolados e bela como uma noite serenada.

Verônica é casada com seu vizinho de baia, o Cláudio; negro reluzente – cor de azeviche, altíssimo, sorriso largo e afagador, mãos grossas – do tipo que enrosca noutra quando aperta. Cláudio ficou só observando todo aquele burburinho na manhã daquela segunda-feira.

João, o coordenador, pôs os braços entrelaçados para trás e ficou com cara de sério a colher depoimentos sobre o sumiço.

_ Os pacotes de romeus e julietas vieram lacrados? Perguntou João.

_ Sim, seu João. Eu mesma fiz os pedidos e os recebi, todos os pacotes fechados. Aliás, o primeiro pacote foi até eu mesma quem abri. Estavam todos lá: machos e fêmeas. Disse Beatriz – Bia na repartição – responsável pelo almoxarifado.

_ Quando que foi percebido que os romeus estavam sumindo?

_ Toda segunda-feira é essa palhaçada, sentamo-nos para montarmos os processos, perfuramos as folhas e quando vamos fechá-los: Cadê os romeus? só têm julietas. Agora me diga, o que se faz com julietas sem romeus? só se formos amarrar com linha. Disse, exaltada, Lira, uma das atendentes.

_ Não, Não. Tem alguma coisa errada aqui. Conclui João, cofiando o cavanhaque.

Nessas palavras os ânimos se exaltaram e foi um Ah, não diga. Descobriu o Brasil; Temos que pegar esse ladrão; Pra que servem essas câmeras todas aí, são só para se ver se estamos conversando ou nos maquiando no horário de serviço ou é para inibir furtos e corrupção?

_ CHEGA! Gritou grosso seu João. Vou pedir para comprar cinco pacotes de romeus e julietas com o dinheiro do caixinha e veremos o que as câmeras nos mostrarão.

Naquela manhã em polvorosa, todos estavam excitadíssimos. Menos uma funcionária, a Eliana, ela estava escutando música, como sempre estivera, e com o olhar distante. Ela sempre foi um pouco estranha mesmo, quase não fala com ninguém. Quando algum de nós articulávamos uma inflexão mais forte à voz, ela levantava o olhar sem mexer nem mais um músculo do rosto.

_ Eliana!

_ Han, tirando o fone auricular do ouvido e virando-se calmamente em direção à mesa do coordenador.

_ Elabora um memorando para o secretário pedindo as imagens das câmeras do dia em que os pacotes chegaram até hoje, por favor.

_ Sim, seu João. Falou com a voz mais arrastada do que a habitual.

Quando Eliana descansou sobre a mesa seu fone de ouvido no volume máximo, deixou vazar o som que estava ouvindo. Era Sam Cooke, cantor de Soul morto nos anos sessenta. A música era uma de suas prediletas, “Bring it on home to me”.

Você sabe que eu sempre serei seu escravo

Até se eu estiver enterrado

Enterrado em minha sepultura

Mas eu estou te perdoando...

Eliana e Cláudio ficavam por horas conversando sobre música em todo tempinho livre do serviço. Ele era seu melhor amigo na repartição – arrisco-me a dizer o único – e todos achavam ótimo não ter que fazer sala para ela por obrigação. “Ao menos ela fica mais amena quando conversa com ele”, diz Verônica no refeitório quando as Penélope e Mariana futricavam suspeitas em sua cabeça.

Quando a compra emergencial de romeus e julietas chegou, todos avançaram como predadores para cessar com aquele acúmulo de papéis em suas baias.

O seu João ficou de olho nos dias que se seguiram para se certificar que esses novos romeus não sumiriam também. Ao passo, para surpresa de todos, os romeus amanheciam todos juntos a suas julietas. Esses, brancos, não foram furtados, o que deu um estalo em seu João: Mas só os romeus negros são furtados... Calou-se em sua dúvida o coordenador. Agora, mais ávido ainda por ver as filmagens do setor e esclarecer o imbróglio.

Por força do descritivo da requisição, todos os romeus da Ata devem ser da cor preta.

Grampo trilho, em plástico 80mm para 200 fls, na cor preta, utilizado para fixação de papéis. O produto deverá vir embalado com 50 jogos. Deverá constar na embalagem: marca, produto, quantidade, código de barras e dados de identificação do fabricante.

Quando o fluxo de atendimento deu uma folguinha, Eliana chama Cláudio com sua voz fraca e arrastada:

_ Você conhece esta música? E pôs um dos fones no ouvido de Cláudio. Eles, de cabeças alinhadas, suingaram sincronicamente ao som de “Stormy Weather”, na voz de Etta James.

_ Essa é minha versão predileta. Assista ao filme “Direito de Amar”, de Tom Ford, e preste atenção na cena onde os personagens de Colin Firth e Julianne Moore tomam gim-tônica de Tanqueray enquanto a música acontece.

O filme é lindo. Essa cena; sublime.

_ Eu adoro Etta James, diz Cláudio. Tem um filme em que Beyonce a interpreta e rouba a cena, qual é mesmo o nome...qual é mesmo o nome...

….CADILLAC RECORDS! Dizem os dois em uníssono e riem juntos – alto – numa gargalhada gostosa e duradoura.

Alguns colegas volvem o rosto na direção deles. E apenas volvem, e desviram-nos rapidamente – num revolver de sentimentos.

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_ E o memorando, Eliana, já obteve resposta? Pergunta o coordenador.

_ Que memorando?! Indaga Eliana com voz quase inaudível.

_ O do pedido de vistas às imagens, qual mais seria?

_ Ah, eu me esqueci, seu João. É que são tantas coisas e como ninguém mais falou no assunto depois que os romeus brancos chegaram, pensei ser desnecessário.

_ Não, não; Não podemos comprar romeus fora da ATA para sempre. Deixa que eu mesmo o faço e levo pessoalmente ao Secretário.

Eliana – friamente – se virou, repôs o fone de ouvido e continuou sua tabulação dos números de atendimentos do mês.

Nas sextas-feiras Cláudio chegava mais cedo; tinha um acordo de sair uma hora antes para ir à fisioterapia.

Cláudio havia se contundido em uma partida de futebol num campinho perto de sua casa.

Eliana sempre estava lá.

Lá quando Cláudio chegava com sua esposa.

Ela só batia o ponto mais cedo às sextas-feiras. E, considerando que ela vinha de ônibus, imagina-se que ela madrugava para chegar àquela hora.

O casal entra de mãos dadas e dá bom-dia à Eliana que responde eufórica e sorridente _ Bom-dia, Cláudio.

Sem ao menos o esperar sentar _ Cláudio, vem cá.

_ Peraí, Eli, vou só pegar um café.

_Oi, Eli!

_ Olha esse blues que eu descobri assistindo a um vídeo no YouTube onde Obama canta junto com B. B. King, é “Sweet Home Chicago”.

Os dois, Eliana e Cláudio, como que dois corpos ligados apenas por dois ouvidos, dividem a música, o café e a ilusão. Gingam ao som daquele Blues.

Cláudio, grande entendedor do estilo, ressalta: _ Muito bom, Eli. Eu já conhecia essa música. Tudo começou lá atrás com o Robert Johnson.

_ Como eu queria ter vivido nos anos 20, na Era do Jazz. Diz Eli quase segurando a mão de Cláudio.

Ele se assusta e a repeli. Ergue o olhar disfarçadamente em direção a sua esposa que, confiante, lê as notícias de fofocas nos portais da internet; alheia a tudo.

Bom-dia, diz o coordenador ao entrar na sala. E daí por diante é uma sucessão PERTURBADORA de bons dias a serem dados.

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09h.

O boy da Secretaria adentra segurando um volume.

_ Bom-dia, seu João, o secretário enviou-lhe as imagens das câmeras da semana passada.

_ Bom, dá aqui. Vou vê-las no computador.

Todos se espremem às suas costas para assistirem também.

_ Não, Não, não podemos deixar as baias do atendimento vazias. Vão revezando lá em 30 e 30 minutos, até porque isso aqui deve ter mais de 40h de gravação.

A filmagem reproduzia enquanto mais um dia era empurrado com a barriga na repartição.

Nada apareceu ali. João levou o DVD consigo e, como que se voltasse à escola, o assistiu madrugada adentro, como sua tarefa de casa, ao lado de sua mulher e de sua filha recém-nascida. Saltou de um susto na posição 3h35min13s23ms do vídeo.

_ NÃO!

_ O que foi homem, vai acordar a bebê.

_ Foi a Eliana, amor.

_ Foi a Eliana, o quê?

_ Quem furtou os romeus.

_ Ah, aquela esquisita de quem você tanto fala?!

_ Sim, amor, foi ela. Mas por quê? Eu tinha a esperança de que fosse alguém de fora. Meu Deus, o que é que eu vou fazer?!

Naquela noite João não dormiu madrugada nenhuma.

Fumava e tomava Coca;

Fumava e tomava Coca;

Fumava e tomava Coca.

Na segunda-feira, destruído por dentro e por fora, – com olheiras latejantes e um fungar de quem segura o pranto – João chega atrasado.

Em verdade ele nem queria ter chegado.

_ E aí, seu João, assistiu a tudo?

_ Diz chefe, estamos doidos pra saber.

_ É chefe, conta logo.

_ Bem, pessoal. Eu já sei quem foi. Depois do almoço eu farei uma reunião com todos.

Seu dedo inquisidor apontou covardemente para Eliana. Nada foi dito. Só aquele dedo gordo e riste foi o bastante para que todos soubessem quem havia furtado os romeus. Foi uma atitude covarde, de quem não aguentou o peso.

Eli chora como vive; imperceptível. Como se se não fizesse barulho, ninguém a veria ali. Ela olha pro chão, se levanta e tira todos os bolos de romeus pretos da mochila.

_ Mas, Eli. Por quê? Pra quê, Eli? Pergunta Cláudio segurando-lhe a mão esquerda, agora pálida e escorregadia.

_ Foi para ter-te, Cláudio. Eu só vivo por ti, eu só venho ao trabalho para te ver, eu só respiro para no ar sentir o teu perfume. Eu nem lavo mais as partes do meu corpo em que tu tocas. Tu és meu romeu. Não vês que és meu romeu. Meu negro romeu e eu sou tua julieta, tua farta julieta jogada pelos cantos, sem uso, sem vergonha, sem nada; por só ser completa contigo. Meu Romeu.

Naquele dia o expediente terminou mais cedo.

Noutro dia só o Romeu apareceu. A Julieta já não tinha razão para se levantar, e dormiu para sempre.

Eliana matou-se num ato de intensa vergonha pela distância da realidade concreta do dia a dia na qual seu quarto frio e branquíssimo a arremessou.

A notícia veio como o salário:

Rápido; o esperado e sem arrebatar.

Naquele dia o expediente foi normal, até as 17 h.

Só um pouco mais silencioso.

Só um pouquinho mais.

É! o amor é Blues.

O amor é triste.