Você sabe com quem está falando?
Margem direita do rio Paraná. Sudoeste do Brasil. Ano 1960. Levas de pessoas chegaram à região em busca de terras ou aventuras. Há muitos povoados nas margens do rio. Algumas pessoas já moram no local há algum tempo. Construíram fama e fortuna com a ajuda do dinheiro, do trabalho e dos capangas. Em um bar desses povoados, a hora que precede o almoço é sempre a mais agitada. As pessoas tentam enganar suas fomes com aguardente. A fome da mesma forma que a arrogância aumenta quando é estimulada.
Uma brisa quente sopra da direção do grande rio. Nuvens estão se avolumando no céu de dezembro. Um vozerio se desprende do bar e se mistura ao canto dos pássaros que brincam nas goiabeiras. Lá dentro há um princípio de confusão. Algumas pessoas saem e ficam espiando pela janela enquanto outras observam a cena que se desenrola à revelia deles.
-Você sabe com quem está falan...?
A frase inconclusa. Um punho certeiro que derrubou dois dentes de ouro do coronel Simão. O vulto, a sombra que fugiu pelo mato rasteiro da beira da estrada. Um jipe, uma Rural, vários homens e a perseguição no cerrado.
Meio dia, o bar lotado na barranca do rio. Coronel bebe, ri e coça o saco, recostado no balcão. A sua frente, o compadre do açougue conta piadas obscenas. Um andarilho adentra no local e as pessoas dão passagem ao seu cheiro. Uma barata morta e pisoteada no chão faz com que o mesmo desvie um pouco a passada. Esbarra no bico da bota do coronel.
-Seu merda, fedorento, olha por onde anda!
-A disculpi, num foi intenção!
-Vai morrer pra lá peste! O qui você quer?
-Só um góli, sinhô, por obizéquio...
Lá fora, na goiabeira do pátio, dois sabiás protagonizam um duelo sonoro. Dentro do boteco, coronel pega uma garrafa pelo gargalo e despeja todo o conteúdo dela na cabeça do recém-chegado.
-Isso é pra você aprender que onde tem homens conversando, mendigo corta volta.
-Uai, seu sinhô, seu hômi qui eu não sei o nome. U sinhô istragô toda a cachaça, só purquê eu pisei no pé de vósmicê?
-Não, porque você pisou na minha bota americana. Se você tivesse pisado no meu pé, eu lhe daria um tiro na cara!
-O sinhô fazia issu com um cristão?
-Faço!
O mendigo deu de costas e fez menção de sair do estabelecimento. Uma mão forte e grande o agarrou pela gola da camisa e o puxou com um solavanco.
-Mi sorta, seu....
Uma suja e magra mão se fechou e voou na direção da boca do coronel que, surpreso, afrouxou um pouco a camisa ensebada do mendigo. Na mão direita do coronel ficaram os dentes e na esquerda um trapo de camisa rasgada.
-Alguém pegue aquele filho da puta pra mim.
Silêncio no salão. Ninguém ali era empregado dele. Todos eram iguais. Alguns eram desafetos ou era parte em questão de terras, que havia impetrado ação contra ele por grilagem. Lá fora, sim, havia os seus empregados, capangas e afilhados. Mas não puderam nem ver em qual direção passou correndo a sombra esquálida do andarilho.
-O jipe, o jipe, Diogo, Marcão e Palhoça!
- E o senhor Coronel?
-Vou na Rural, com Zezito e Barranco!!!
Uma nuvem de poeira paira no ar, enquanto os dois veículos arrancam na direção do rio. Era o único lugar para o qual se poderia fugir. Lá havia uma balsa que ligava as zonas rural e urbana. Se o maltrapilho fosse esperto era para lá que iria. Mas o maltrapilho não era esperto. Havia corrido até a curva da estrada, atravessado uma cerca e depois um riacho. Parou debaixo de um ingazeiro para recuperar o fôlego. Depois, começou a comer algumas frutinhas dos galhos mais baixos. Sabia apenas de uma coisa: para ele não havia saída.
-Coronel, o que vamos fazer com ele? Perguntou Barranco, que era o mais lento de raciocínio.
-Vou dar uma lição nele. Só isso!
-Então, pra quê os revólveres?
-Pra enfiar na sua bunda, imbecil!
O maltrapilho ouviu o barulho dos veículos e as vozes dos homens que avançavam pelo capinzal. Avançavam resolutos, pois conheciam a região e seguiram as pegadas. Diferente dele que havia crescido longe dali. Nesse momento só tinha um desejo: que chegassem logo e acabasse com ele.
Avistaram o andarilho agachado de costas contra a árvore. Avançaram os seis contra a mirrada figura que não se moveu. Estava pensando que poderia ter ido beber sua cachaça em outro lugar.
-Pega, segura. Toma filho da puta, desgraçado!
-Ele não tem dente, senhor, pra nóis quebrá! Disse Barranco.
-Nem tem onde bater, esse saco de osso!Falou Zezito.
-Mas tem uma cara de bicho, pra ser esfolada! Bradou o coronel.
Cada um deu um soco no mendigo. Cada soco era uma queda e o próximo a bater tinha que levantá-lo do chão. O andarilho nada dizia, vez por outra soltava um gemido rouco e fundo. Quando os homens cansaram de bater, ficaram acocorados ao lado do embrulho em que havia se transformado o homem. Como sempre, Barranco foi o primeiro a trazê-los para a realidade.
-Coronel, o que vamos fazer com ele?
-Vamos enterrá-lo aqui mesmo.
-Vivo ou morto?
-Tanto faz! O que importa agora é a versão da história!
-Que história? Quis saber Marcão.
-A história que vou contar lá no bar!
Enquanto pensava em como se desfazer do corpo, sem deixar vestígios para os seus desafetos o incriminarem, coronel Simão deixou a prazerosa tarefa de puxar o gatilho para o Diogo. Não que ele não gostasse de fazer isso. Mas o Diogo tinha um prazer incomum em fazê-lo. Enquanto isso, ele pensaria em um bom desfecho para o caso.
Lá no boteco, compadre do açougue e mais meia dúzia de homens bebericavam lentamente suas doses de Jurubeba quando compadre Simão chegou, fazendo uma manobra arriscada com sua Rural Willis. Vinha sério por conta da falha nos dentes. Sua testa estava enrugada e o seu semblante era o de alguém sombrio, no mínimo preocupado.
-Ô compadre, deram uma lição no imprestável?
-Não, não deu compadre. O infeliz se jogou no rio. A essas horas já está chegando na Argentina.
-Uai compadre, então como que fica??
-Não fica. Já solicitei uma tabuleta pra colocar na entrada do bar!
-E os meninos cadê?
-Dei folga pra eles hoje. Amanhã vou à cidade grande consultar um dentista.
Cinco dias depois, havia duas placas de madeira envernizada dependurada na entrada do estabelecimento rústico. Em uma delas se lia: “É proibida a entrada de mendigos e andarilhos”. Na outra placa havia o desenho de um homem com um saco às costas e um enorme cachorro com a boca aberta para ele. O cachorro exibia todos os grandes dentes da frente.