Judith, uma vida árida e amarga.

Tem pessoas que nascem, vivem e depois morrem sem deixar descendentes, sem legar alguma obra benfeitora, o que deixam na memória de alguns ao seu redor é apenas uma turva, para não dizer negra lembrança. Judith foi alguém assim. A conheci já no final de seus dias, porém sei do que falavam dela os que com ela viveram desde a infância. A infeliz era a ovelha negra da família. A começar pela própria cor amorenada, isso para não dizer a coisa mais literalmente. Era figura magra, tinha uns olhos meio esverdeados e era pessoa amarga. O seu lado virtuoso era opaco e sua malícia bem explícita. Pessoa choramingona, fingida, sentia-se vítima de tudo o que acontecia, mas é melhor que observemos suas ações desde a infância.

No sertão cearense nos anos de estiagem da década de trinta, quando Judith nasceu tudo era muito difícil para todos. A farinha era pouca e a rapadura rara. Pior que a seca, para matar gente todo dia, era a peste da cólera que atacava outras regiões onde passava a nova estrada a transnordestina. Contudo, o povo dos vilarejos e pequenas cidades do vale jaguaribano, ia vivendo e escapando com o pouco que havia juntado dos anos anteriores de bom inverno. Os pequenos pecuaristas, sem esperança de chuva, já no final de março, começavam a vender alguns dos seus bichos magros. Outros, insatisfeitos com os minguados preços dos compradores oportunistas, matavam os animais e salgavam a carne para atravessarem o período tenebroso. Era melhor comer da criação mesmo magra, do que deixar que ela servisse, pouco tempo depois, exclusivamente aos urubus.

Contam os parentes idosos que com Judith viveram, que naqueles tempos difíceis, ela, na hora do almoço ia à panela e colocava pedaços de carne no prato e os cobria com farinha, depois vinha com o prato e dizia para a mãe que estava sem carne, mas todos da casa já conheciam essas e outras das suas patranhas. O tempo foi passando, as irmãs da ovelha por serem mais simpáticas com a vida foram se casando, e ela ficou sem arranjar um namorado, mas nada é sem razão. Vieram anos de enchente e depois os de escassez, pois assim é que o normal no semiárido. Judith foi ficando moça velha, quanto mais velha mais linguaruda e bisbilhoteira, talvez por se esquivar do labor. Devido à sua falta de espírito e alegria, não lhe apareceram pretendentes, mas nem tudo é cantiga de grilo, o tempo não para e tudo pode acontecer.

Certo dia, em que nem ela imaginava, lhe apareceu um sujeito solitário com a proposta de juntarem os trapos. Ele, pessoa sem maus hábitos além do cigarro, vinha de um relacionamento frustrado, não era carne nem peixe. Ela, que vivia na casa dos pais, se não gostou da intenção dele, também não desgostou e depois de alguns acordos frios e sem paixão, resolveram dividir um teto. Viveram como podiam dois adultos ressequidos, quais cipós da caatinga, desfolhados e propensos a não gerarem frutos. O único vício do casal era o tabagismo, mas isso era pouco ignorado na época, pior seria se um deles ou os dois bebessem cachaça.

Não digo que aos trancos e barrancos viveram os dois, digo que levaram uma vida calma, pelo menos estavam aptos a preencher cada um o vazio da solidão do outro. Igual a pessoas que voluntariamente optam pela dura reclusão, quase não saem, não se relacionam, não fazem amigos, não vão à igreja e nem a festa. E eis que, num alegre dia de agosto, o companheiro de Judith parte para não mais voltar, deixando-a mais negra ainda. Vestiu preto por anos e tornou-se mais lúgubre que antes. Por se sentir muito atormentada pela peste da solidão, resolveu voltar à casa paterna. Lá pelo menos tinha com quem conversar e continuar a destilar suas grandes dores.

É sabido que o tempo não para, e no semiárido se alteram vacas gordas com vacas magras. Na vida de Edith o período das vacas gordas havia passado, dali para a frente não sei por que fados do destino a vida dela ia seguir como ela mesma dizia: - igual cantiga de perua que uma só: de pió a pió. Ela podia muito bem ter optado por vestir-se de algum contentamento, mas isso não fazia o seu gênero, ela gostava mesmo era de se maldizer. Edith era mórbida, pensava nas coisas do pós-morte. Com a aposentadoria que recebia, mandou que se fizesse para ela uma bela catacumba, mas não pense que esperava a morte com a resignação de alguém devoto. Gostava de ir a funerais das pessoas que faleciam e sabe-se lá o que sentia quando via um cadáver dentro de um caixão. Era provável que se alegrasse com o tétrico espetáculo, ninguém o sabe. Não era rezadeira, nem carpideira nesses momentos, gostava de conversar racionalmente sobre os motivos que levaram a pessoa a falecer, fosse idoso ou gente nova. Edith era de um jeito avesso e todos que a conheciam sabiam do seu lado negativo.

Certa feita, já com mais de oitenta anos foi repreendida por um sobrinho. É que ele a viu apanhando pontas de cigarro jogadas na calçada. Se fosse por simples hábito de limpeza, tudo certo, mas a mulher estava juntando as bitucas para reaproveita-las fumando-as. Também tinha o hábito de comer arroz cru e isso irritava aos intolerantes parentes que com ela viviam. Devido a alguns problemas de saúde, pois Edith já usava um marca-passo, o sobrinho lhe passou um sermão para o seu bem, mas, perdeu o estribo e foi botando para fora toda sua raiva contra a infeliz maledicente. Ela, por sua vez, não recebeu nenhuma das recriminações do sobrinho com bom grado, e como uma serpente acuada lançando olhar vingativo, só faltou amaldiçoá-lo. Por causa desse ferrenho atrito ficaram de mal para sempre, apesar das farpas ferinas na ausência continuarem acesas dos dois lados. Foi nesse período que eu a conheci, vivia dentro de uma rede acometida por enfermidades matadoras e degenerativas. Nas visitas que fiz a ela em resposta às minhas saudações e interrogações de como ela estava, eu nunca ouvia de sua boca resposta positiva, mas sempre uma lamúria, do tipo: estou por aqui escapando, cheia de dor, a caminho da cova...

Edith terminou seus dias cuidada por uma sobrinha rezadeira. Partiu numa segunda-feira de muito sol e calor. Em seu funeral, compareceram poucos conhecidos da redondeza. Aquela pobre foi a última filha da família a falecer, seus irmãos e irmãs já haviam sido enterrados há anos. A notícia de sua morte quase que passou despercebida pelo povo laborioso da cidade. Compareceram parentes distantes e algumas amigas que comungavam das mesmas ideias sombrias da morta. Durante o velório regado a aguardente, para quem era de beber, ouvia-se comentários masculinos em tom de riso de como realmente era a finada em vida. As línguas vituperinas estavam afiadas bem à moda do que acontecia em outros velórios em que a morta comparecia. O corpo foi depositado em uma bela catacumba e a foto que exibe o seu semblante, não consegue exprimir alegria apesar do riso sem sal. O sobrinho que lhe repreendera por catar guimbas de cigarro e comer arroz cru, não foi visto no velório.