As utopias do Raimundo
Naqueles anos da jovem guarda, eu era um ingênuo rapazola do interior. A eletricidade ainda não havia chegado ao sertão. Pelo rádio a pilha eu ouvia as novas músicas cantadas pelos irreverentes artistas da época. A televisão eu só ia conhecer uma década depois. Hoje, transcorridos mais de quarenta anos daquelas tertúlias, digo que o meu lugar se desenvolveu em algumas coisas, mas está cada vez mais pobre noutras. Está ficando cada vez mais deserto, abandonado. Lembro de quando nos mudamos para a cidade. Lá, o ritmo era outro, tanto para o trabalho como para a diversão. Nós adolescentes íamos à escola, nos fins de semana íamos ao clube dançar. Havia um grupo musical tocando os sucessos do momento: embalos do Roberto Carlos, lentas baladas italianas, versões dos Beatles e outros estilos variados. Hoje a pegada é outra, primeiro que não há mais clubes, agora, aqueles lugares abertos onde fazem as festas, não passam de currais para mim.
Hoje os conjuntos musicais se chamam bandas, usam potentes amplificadores, uma monstruosidade de decibéis e tocam uma música que é insípida e agressiva aos meus velhos ouvidos. Não frequento tais festas, esses eventos não me agradam, enervam-me, odeio-os, são disparatados, uma insanidade do tempo. Parece haver invento compatível para cada geração. O meu avô também não gostava da música da minha juventude, achava aquilo nefasto, tal qual como é a minha opinião sobre a música do momento.
Fui criado no interior e a renda lá de casa vinha da agricultura familiar, eu frequentava a escola pública do lugarejo, pescava e nadava no açude, caçava passarinho e preá. Nos fins de semana quando havia algum festejo, nossa diversão era dançar com as moças do lugar ao som do rádio. Tive meu tempo de boêmio depois, coisa muito linear, sem nenhum episódio que valha a pena ser registrado. Hoje vivo para minha família. Porém, vou relatar um acontecido com um amigo meu, nascido na cidade, que era e continua sendo grande e inveterado festeiro. No meu tempo de rapaz e morando na cidade o esporte para nós era o futebol, chutei e corri muito atrás de bola, eu era mais um esforçado naquele jogo de velocidade, mas a minha preferência sempre foi mais pescar e nadar em açude ou rio.
As festas na cidade eram em clubes e havia músicos tocando. Não era necessário pagar entrada, a pessoa, homem ou mulher podia comparecer, contanto que estivesse trajando a roupa adequada para a ocasião. Mas lá dentro, se o cavalheiro começasse a dançar, aparecia um funcionário do clube cobrando uma cota. As damas estavam isentas só os homens pagavam. Era assim, depois foi que passaram a vender bilhetes na portaria.
Os bailes eram festas que aconteciam aos domingos depois da missa. Todo fim de semana era aquilo. No clube, se vendia bebidas. Fumar era uma moda adotada pela maioria das pessoas maiores de idade. Pitava-se em qualquer lugar, dentro de ônibus, restaurantes e até mesmo no salão de dança. Não era como hoje, onde é raro se ver alguém manuseando um cigarro. Aquelas festas aos domingos era o deleite do fim de semana, o momento mais aguardado e sonhado por alguns jovens. Ali no clube surgiam flertes, paqueras, namoros e paixões às vezes fulminantes, capazes de levar a uma briga violenta, quando alguém mais valente se sentisse ultrajado.
O caso que presenciei foi horrível, não houve morte ainda bem, mas muitos casais saíram salpicados de sangue. A música parou, a polícia interveio quando já os dois briguentos estavam imobilizados por outros de maior idade e mais força.
Tudo começou pela queimadura do cigarro. O meu amigo Raimundo, jogador do melhor time da cidade, estava fumando enquanto dançava com uma jovem “capa de revista” como ele ainda hoje diz, para elogiar a beleza das jovens que vê. No movimento dos pares, uma jovem que dançava com o namorado, teve o cotovelo queimado pelo cigarro do Raimundo. Ela dançava colada ao namorado e com os braços sobre os ombros deste. O susto da moça, devido ao inesperado ardor lhe despertou o reflexo do braço, ao levantar o cotovelo instintivamente agrediu em cheio o pé do ouvido do namorado num tapa com as costas da mão. A reação foi imediata e por tabela, a inesperada queimadura mexeu com a moça, esta bateu no rapaz, e este se zangou pelo tapa em lugar muito sensível, mas ela lhe explicou quase que no mesmo reflexo:
- Desculpe querido... fui queimada pelo cigarro desse homem!
Naquele tempo, as moças se melindravam com grande facilidade e os namorados reagiam quase que sem pensar. Se baseavam muito nos heroísmos dos filmes onde imperava o telequete. Foi o que deu, em questão de segundos e antes de qualquer pedido de desculpa do meu amigo, este quase foi ao chão com a moça “capa de revista” com a qual dançava. O murro que levou na lateral do queixo o deixou desnorteado. Eu estava numa mesa próxima e vi a covardia. Vim para a pista. A roda estava formada. Raimundo era entroncado, bom de bola e de briga. Naquele momento os dois se destacavam no centro. O conjunto parou a música, alguém da portaria gritou pela polícia. Começou a troca de bofetes e a xingação:
- Respeite as caras seu nojento...
-Vou quebrar a sua cara seu porra!
Distanciaram-se depois de alguns desesperados socos, com os braços em posição de boxeadores. Raimundo com grande agilidade de perna desferiu um golpe rasteiro e o cara caiu com um baque seco no salão, a mulherada gritava. Alguém quebrou uma garrafa de cerveja, vi um vulto em correria se aproximando por traz do Raimundo e ouvi o grito de dor. A intenção do terceiro na briga era degolar o rapaz. O sangue se espalhou e alguns tiveram a roupa respingada. Foi aí que outros junto comigo conseguimos segurar e apartar os dois. A polícia chegou. Levaram Raimundo para o hospital e o outro para a delegacia. Depois daquilo não houve mais clima para festa. A consternação tomou conta da maioria, mas felizmente o meu amigo não morreu daquela vez. Quem diria que algo tão banal como um cigarro que na época era a “preferência nacional” pudesse ter gerado tamanho fuzuê.
O tempo passou, ele se curou do corte. Antes de um ano após esse episódio, Raimundo viajou pra São Paulo, onde trabalhou por um bom tempo. Depois foi transferido, voltou ao nordeste de férias e daqui seguiu para o norte, Manaus. Por lá morou, trabalhou, casou, separou, porém nunca abandonou a vida boemia, nem a cerveja, nem o cigarro, nem o amor pelo futebol. Eu fui ficando, arranjei emprego, casei e ainda permaneço com a mesma mulher. Bebida, cigarro e boemia para mim são coisas do passado, e futebol só acompanho durante a copa do mundo. Aquele tipo de festa da minha juventude não existe mais, e quem é como eu se dedica ao lar, não tem tempo de frequentar farras de solteiro.
Transcorridos agora quarenta anos, meu amigo Raimundo voltou as origens. A rotina da vida no norte lhe saturou a vontade. Está por aqui, agora mora sozinho na mesma casa onde nasceu, já não tem irmãos solteiros, nem pai nem mãe. Logo que chegou, eu o visitei e conversamos muito. Verdadeiros migos são assim, têm sempre alguma coisa boa para relembrar. Folheamos páginas da nossa juventude, jogos de futebol, a copa de 1970 onde o Brasil foi tricampeão e um dos patrocinadores era o cigarro continental “preferência nacional”. Relembramos alguns dos nossos amigos que já se foram para a eternidade, falamos de velhos sucessos de Roberto Carlos e da briga violenta no clube que começou por causa da maldita queimadura. E eu brinco dizendo que o “cigarro quase o matou”. Ele no seu bem humorado jeito, ri e diz que talvez até morra pela fumaça, mas não pela queimadura.
Quando o assunto é namorada digo que ele se destacou muito naquela época. E vejo o efeito das minhas palavras, sim porque há nele uma nítida emoção ainda hoje quando fala das deusas que namorou e as chama de “capa de revista”:
- Só namorei mulheres lindas, capas de revista! - Alardeia.
Nesses momentos de empolgação ele acende mais um cigarro e pergunta para o irmão dele que é vaqueiro e matuto:
- Rapaz onde anda aquela moça bonitinha, a Lucinha da família dos Barbosa?
E o irmão entre a brutalidade natural e a postiça ironia diz:
- Tu pensa que ela tá novinha ainda é? Tá sambada e mais banguela que eu Raimundo, aquele povo do nosso tempo de rapaz tá todo mundo véio igual a tu e eu home, ou tu ainda pensa que sois um rapazinho de vinte anos? Acorda mano!
E eu concordo com as frases secas do irmão dele, mas não lhe faço esse tipo de advertência. Raimundo pouco engordou e a estatura é a mesma. Devido ao uso frequente do tabaco, o homem às vezes tosse e tem um pigarro na voz. Seus cabelos estão esbranquiçados, a pele é rugosa e avermelhada. A cicatriz da garrafada ainda é visível em seu pescoço e parte do queixo, e ele usa dentadura.
Não nego que meu amigo de juventude é homem viajado, mas não estou certo se amadureceu bem. Não largou o cigarro e todos os seus domingos são regados à cerveja e a churrasco. Olha com sofreguidão para as debutantes que vê pela rua, moças que pela idade podiam ser suas netas. É, está de volta, dei-lhe as boas-vindas, mas meu tempo é pouco para conversas diárias, tenho muitos afazeres, e hoje nos cumprimentamos com um simples alô ou bom dia quando nos encontramos. Os assuntos se esgotaram, não compartilhamos o mesmo ciclo de amizades, sou um pai de família, ainda cumpro horário e mesmo se eu fosse aposentado, não creio que eu entraria para o rol dos ficam olhando para o tempo.
Observo que ele, por ter levado vida pródiga, não trouxe nenhum capital. Não possui bens, imóveis, nem automóveis, anda a pé ou de bicicleta. Apelou para a aposentadoria que o governo concede aos que completam a idade. É do que vive, mas como é fumante inveterado, muitas vezes pede dinheiro emprestado a uma irmã para manter a tradição do vício, e o empréstimo passa por doação. Vive só. Teve mulher, bom emprego, ganhou bom dinheiro e igualmente gastou todo ele nas curtições das noitadas no norte. Conta coisas curiosas sobre Manaus, fala da carne do peixe boi, das morenas amazonenses, mostra fotos de mulheres “capas de revista” que ele diz ter namorado por lá. Em suas conversas fala que o Brasil é um país sem justiça e que não entende como um jogador de futebol ganha tanto dinheiro. E com todo saudosismo diz que na época que ele jogava bola não tinha ninguém melhor do que ele aqui na cidade. Faz aposta na mega-sena e entre um cigarro e outro delira contando como iria gastar e investir o dinheiro do prêmio milionário caso acertasse as dezenas.
Pois é, o homem conseguiu se aposentar pela idade, o seu tempo semanal não é gasto só com o cigarro a bebida e os devaneios. Ele assiste pela televisão aos campeonatos de futebol do Brasil e do exterior, o que não é pouca coisa para uma pessoa se ocupar. Os maus amigos e parentes o detratam, opinam que ele vive fora da realidade. Alguns o têm como louco. Já os bebedores de cerveja e cachaça, que são os bons amigos dele, levam o tempo a elogiá-lo dizendo que ele é o“cara”! Sabem que quando é dia de pagamento para o Raimundo, os parceiros de copo bebem por conta do amigão. Nos encontros de bebedeira, dizem que ele é o“cara” que mais sabe sobre as seleções que jogaram nas copas, que sabe os nomes dos antigos astros do futebol, as posições em que jogaram, os gols que fizeram e contra quem, e em que jogo etc. Uma cultura muito útil para quem foi jogador amador e hoje é levantador profissional de copo. E entre a embriaguez e a insensatez dizem mais, e essa é a parte melhor, que o Raimundo ainda é o mesmo boêmio namorador e que ninguém, e repetem em voz alta depois de esvaziar o copo de cana, que ninguém! Jamais aqui na cidade namorou tanta mulher bonita, tanta capa de revista como ele.
Eu não digo nada, não frequento ambientes exaltados, apenas reconheço que Raimundo teve seus dias de glória quando rapaz mas, estamos noutra época. Ele realmente namorou muitas moças bonitas no passado, porém, hoje não tem nenhuma mucama para acompanhá-lo. Sei que ele não é completamente solitário, pode contar pelo menos uma vez por maês com uma razoável legião de fãs no dia em que recebe o salário de apoesentado. Raimundo ainda é o “cara” e sem sombra de dúvidas ele adora ouvir esse lero-lero da boca dos papudinhos.