TODO CAGADO NO FIM DO MUNDO
Estava frio e eu tava cagado.
A merda quente revelava que eu estava vivo naquela cidade de casa de bonecas. Corria perna abaixo enquanto eu olhava pra cima. Pras montanhas. Era lindo. E os turistas, coitados, procuravam a carniça. Foi assim que eu cheguei ao Ushuaia, cagado em via pública. Quem nunca?
A cidade dava dó, com casinhas bem cuidadas, ruas limpíssimas e pessoas vestidas com peles de animais assassinados, entrouxadas dentro de casacões milionários. Parecia um set de filmagem. Falsidade. Enfim, nada da merda secar, apenas o meu cheiro tropical se alastrando pela rua gelada, escorrendo bem mais baixa que a dignidade de qualquer turista rico em toda àquela alameda jamais chegou. Ao menos minha bosta era real. Peidos quentes reviravam minha barriga naquela tarde fria que congelava a ponta do nariz. Eu suava frio. “Um banheiro, por deus!”.
Nas vitrines, mais e mais trecos, bugigangas, miscelâneas de lixo e entulho. E eu ali, todo borrado. Arte barroca. Será que essa gente não observa no reflexo da vitrine o quanto são miseráveis, tristes e esmaecidos? "Pelo menos não estão cagados". Viraram adorno de objetos programáticos. Figuravam tudo, menos o que desejam transmitir. Constipados. Pelo menos eu admitiria estar na situação que estou. Parecem que fingem tudo. Mas fingem o quê? Sei lá, eu só pensava em me limpar a crosta.
"Onde vou me limpar?". “Olha lá”. Chocolates artesanais de um lado da vitrine e o meu chocolate fofo nas cuecas, do outro. "Ah, vai ser aqui!".
Criei coragem e entrei na loja rústica, feita com caríssimas toras de madeira de uma floresta que não existe mais. Entrei.
-"Permiso, puedo usar el baño?".
-"Si" - corada sem me olhar nos olhos, a moça assentiu.
Atravessei o corredor, segurando as pregas como dava, pois aqui a máxima "o que é um peido pra quem tá cagado!?" já não se aplicava. Qualquer peido torto poderia ser o meu fim. Lembrei do Marcos Diabólico dizendo aos berros, “diabo, quando vem o primeiro caldo, não tem como segurar. O cu é fraco, diabo. Depois que sai o primeiro, ele se nega a se conter. A cagada da vida!!!” E a gente sempre acha que tem muito mais barro do que realmente tem. O tempo se arrastava. As pessoas me olhavam. Sabiam. E quando percebiam que eu sabia o que elas sabiam o que se sabe sobre um homem cagado, desviavam o olhar. Entrei. Vitória. Pus a mochila no chão. Liberei a ventoinha. A calefação quente não demorou muito a fundir-se ao perfume da selva. A cascata de chocolate que vi no corredor me lembrou o que descia perna abaixo. Imaginei o Pica-pau descendo a num barril pela minha perna. "EEEEEE". Era o Fin del Mundo sentindo a rutilância das minhas entranhas. Do meu pântano cheio de aligátores mortos. “deus meu, onde fui parar”.
Todos riam lá fora, cochichavam, e eu me cagava de rir no troninho. Deve ter sido o que mais emocionante aconteceu por aquelas voltas desde a chegada dos colonizadores assassinos e todas suas doenças e disenterias.
Acho que foi o dono da loja, não sei, que chegou e "Puta madre!!! Dios mio!! Quién morió?!!" - praguejava.
A situação estava feia do meu lado de cá da porta. "Grande cagada" ter comido aquilo. Literalmente. A neve caída branda lá fora enquanto mais uma avalanche de bosta descia de mim. “Droga”.
Eu continuava rindo, e quanto mais ria, mais peidava. Peidos melados. "Nossa, que chocolate de merda"! Na sinfonia do desarranjo, cu era o solista.
Apostaria um dos eis toletões só pra ver a cara do caminhoneiro que me levou de carona até o Ushuaia, que dividiu o chocolate comigo, também estaria, a essa hora, rindo e peidando em sujas privadas da patagônia. Todo cagado em algum banheiro andino.
Papel, ter, tinha...não o suficiente. Sei que contribuí para o desmatamento aquele dia. Passei até o papelãozinho. E dale sinfonia. “Ala mierda” dizem alguns argentinos...
A cueca virou lembrança. Um manifesto. Marca minha de um território conquistado. Enrolei a bomba numa sacola.. Saquei da mochila o marca-texto e autografei "deus o tenha".
Joguei a obra na lixeira, refleti sobre o que fiz e conclui que deveria ter escrito em espanhol. Eu continuava a rir. Descontroladamente, peidando com se não houvesse amanhã. Pensava nos funcionários e clientes da loja, confabulando algo sobre o estrangeiro cagado e preso no banheiro, sabe, sei lá, algo que contariam ao jornal local. Eu já imaginava as manchetes:
"VIAJANTE CARONEIRO
CAGA RUA,LOJAS E ESPANTA TURISTAS
E GERA CRISE DIPLOMÁTICA
ENTRE NAÇÕES VIZINHAS"
Ou, ainda,
" JOVEM VIAJANTE BRASILEIRO É
DEPORTADO POR CAGADA. TENTATIVA DE GOLPE ENVERGONHA MERCOSUL".
Caguei até o botão da descarga cor de ouro reluzente. Limpei a lambança. A essa altura, até minha alma tava cagada. Peguei um par de meia, molhei na pia de torneiras escandalosas, lavei a bunda esquerda, depois a direita, e, em seguida as pernas. Nem minha calça se salvou. As torneiras deviam custar muito mais que todo o dinheiro que eu tive a viagem inteira. Coitado de quem usaria o "baño” depois de mim.
Novas manchetes surgiam pela cabeça enquanto limpava meus fundos:
"JOVEM CAGA E MATA 10";
" AMEAÇA BIOLÓGICA. O PRELÚDIO DE UMA GUERRA QUÍMICA?"
Enquanto eu me limpava, pensei na neve lá fora, branquinha e sutil. Na discrepância estética das torneiras, na distância que eu tinha percorrido de carona desde o Brasil até a cidade mais ao sul do mundo só pra me cagar todo. Pensei em quantas outras pessoas estariam, agora, cagadas e perdidas em algum outro banheiro do mundo. No liberalismo e nos chocolates de baixa qualidade. Nas Malvinas e na merda inglesa. Pensei no vento lá fora, nas pessoas rindo, existindo, comprando e fazendo cara de espanto. Talvez seja isso que elas fingem tão bem. Fingem que não cagam e que não peidam. Chamando diarreia de piriri. Fingindo não ter cu. Todos tem, eu, você, os pinguins, os banqueiros de merda, os turistas. Che Guevara tinha cu. Evita Perón tinha. Os nativos que foram trucidados por ingleses deviam dançar ao redor das grandes fogueiras que deram nome a região, louvando e pedindo alívio da prisão de ventre. Os animais que viraram casaco tinham um. E eu estava ali, sozinho, eu e meu cu, no meio de uma cordilheira gigante, todo cagado, passando uma meia molhada no rabo, esperando que a vida fosse mágica na terra do fogo.
Eu era vagabundo demais para uma vida de menos – DIÁRIOS DE CARONA.
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