O sacrifício do tubarão

Corria o ano de 1929 na pequena cidade de Jaguaribe Mirim. Almir acompanhava o pai, Cosme, seguidos pelo cachorro da família, no caminhar diário que faziam de sua casa até a fazenda de criar gado localizada às margens do rio Jaguaribe. A estação chuvosa já ia pela metade e o adusto sertão, outrora cinza, estava colorido com o verde das folhas a vestir as árvores, ontem espectros de desolação, hoje uma linda aquarela a colorir e alimentar as esperanças do sertanejo. O rio Jaguaribe, de caráter intermitente, intitulado o maior rio seco do mundo, corria já caudaloso, cobrindo toda a extensão da largura de seu leito.

Pai e filho diariamente tinham o compromisso de cuidar dos animais domésticos da pequena fazenda, constituídos de um modesto rebanho de vacas leiteiras, e mais umas poucas cabeças de caprinos e ovinos. Almir, filho mais velho, na época com doze anos, auxiliava o pai nas lides da fazenda durante o período da manhã. A tarde estava livre para a escola que frequentava. Seu pai, apesar de ter apenas a instrução primária, era cônscio da importância do estudo para o futuro de seus filhos, principalmente dos homens.

O cachorro fora batizado de Tubarão, obedecendo a tradição nordestina de colocar nomes de grandes peixes ou animais que habitam os mares longínquos em seus pequenos e franzinos animais domésticos. Vale lembrar que Graciliano Ramos em sua obra Vidas Secas tinha como personagem de destaque a cachorra Baleia. No célebre romance o autor chega a dar voz e racionalidade ao pequeno e desvalido animal que demonstra ser de uma fidelidade indescritível aos seus donos retirantes da seca.

Naquele fatídico dia Almir não notou que seu pai, além dos apetrechos e ferramentas que conduzia costumeiramente, levava consigo uma longa corda com um laço em uma das extremidades. Ao chegar à propriedade, Cosme chamou carinhosamente o cachorro Tubarão que surpreso acorreu, balançando a cauda, docilmente, tomando chegada junto ao seu dono. Tubarão raramente recebia agrados de Cosme que embora pessoa de boa índole não era do tipo afetuoso com cães e gatos. Apesar do coração mole mantinha a atitude rude de um típico homem do sertão acostumado a lidar com as agruras do meio em que vivia. Guardava sua comedida afeição aos seus bichos do campo, a saber: cavalos, vacas, cabras e ovelhas.

Almir estranhou o comportamento atípico de seu pai. Surpreso, quedou-se atento a observá-lo. Ato contínuo Cosme, seguido por tubarão que inocentemente atendera ao seu chamamento, aproximou-se de uma frondosa oiticica situada no barranco do rio, escolheu um ramo elevado da copa e arremessou a corda em sua volta. Cuidadosamente envolveu o pescoço de tubarão com o laço da outra extremidade e em seguida passou a puxar a corda de modo a, uma vez retesada, lentamente suspender o corpo do franzino animal que debalde, em desespero, se debatia. Almir, mais revoltado que surpreso com o que estava testemunhando ponderou para o Pai em tom de clamor: - Pai, o senhor está matando o tubarão. Por favor pare, não faça isso.

Cosme, determinado, continuou a enforcar o pequeno cão, com a corda retesada enlaçada em seu pescoço e só o liberou deixando-o vir ao chão quando suas forças haviam sido exauridas e vida não mais lhe restava.

Diante da perplexidade do filho explicou, calma e pausadamente, que já havia recebido não uma, nem duas mas três reclamações sobre o comportamento sanguinário de tubarão que havia atacado e sangrado até a morte ovelhas e borregos de vizinhos. Explicou ao filho que cachorro que mata ovelha uma vez, sempre voltará a matar. É como se adquirisse um vício sem possibilidade de recuperação. A alternativa seria criá-lo preso, acorrentado, o que seria, na visão de Cosme, muito pior para o animal. Entendeu ele que o sacrifício seria um mal menor. Para Tubarão, perder a vida seria menos danoso que perder a liberdade pelo resto de sua existência. Assim procedendo estava apenas abreviando a vida do pequeno animal para evitar maior sofrimento.

Tubarão teve um fim trágico, semelhante ao de Baleia, sacrificada por Fabiano, seu dono, personagem do aludido romance, para proteger a família de pretensa hidrofobia adquirida pela cadela e mais ainda para aliviar o sofrimento do escanzelado animal.

Almir aceitou as ponderações do pai. Afinal, não fora correto tubarão transformar-se de uma hora para outra em matador de ovelhas e borregos, animais de grande valia para o homem do sertão. Também não suportaria ver seu fiel amigo preso e acorrentado pelo resto de sua vida.

O garoto decidiu prestar uma última homenagem ao cão. Não iria permitir que os urubus viessem a usar seu corpo como repasto. Encostado ao tronco da frondosa oiticica, há pouco testemunha e partícipe involuntária de sua morte, cavou uma pequena cova onde sepultou carinhosamente o corpo inerte e sem vida de seu fiel amigo.

Chico Tavora
Enviado por Chico Tavora em 25/10/2016
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