A ALUNA DO LOURENÇO FILHO

A estória que vou contar passou-se há mais de meio século quando ainda era adolescente com a idade de 15 anos e cursava o primeiro ano científico (atual ensino médio). Os fatos foram desencadeados como conseqüência de mudanças provocadas pela política. Talvez por isso, ainda hoje tenha ojeriza à política e aos políticos.

Meu pai trabalhava numa repartição pública estadual ocupando uma modesta chefia que lhe permitia perceber uma gratificação além do salário. Com a mudança de governo após eleição majoritária houve mudanças na direção das repartições públicas. Assumiu a chefia do órgão onde meu pai trabalhava um político ligado ao partido vitorioso. Seu primeiro ato foi substituir todas as chefias. Meu pai, embora não pertencesse aos quadros de qualquer partido político, perdeu a chefia e a gratificação. Em conseqüência, passamos a ter dificuldades financeiras, em virtude da abrupta redução de seu salário.

Logo que tomei conhecimento dos apertos financeiros da família expressei o desejo de trabalhar. Consegui emprego em uma loja especializada na venda de móveis, eletrodomésticos e material de escritório, ganhando um salário de menor da época (metade do salário mínimo). Era pouco, mas já constituía uma ajuda, pois além de pagar meu colégio ainda repassava quase tudo o que sobrava para auxiliar nas despesas da família.

A loja era propriedade de três sócios, o Renato, seu irmão Luiz e um terceiro sócio, sem parentesco com os demais, de nome Bento, um velhote ainda solteiro aos cinqüenta anos.

Fazia de tudo, ou quase. Era uma espécie de contínuo (office boy). Fazia pagamentos de duplicatas e desconto de cheques em bancos. Na loja atendia a clientes, espanava a poeira dos móveis, explicava aos clientes o funcionamento dos equipamentos de som (radiolas e eletrolas - eram assim denominados à época). A loja vendia equipamentos da marca OLIVETTI, desde máquinas de escrever portáteis até calculadoras sofisticadas, embriões dos modernos computadores. Aprendi a trabalhar com esses equipamentos e demonstrava a sua utilidade e performance aos clientes. Trabalhava muito. Meu dia começava cedo. Levantava às seis da manhã, tomava o café da manhã e deslocava-me caminhando de casa até a loja (aproximadamente vinte quarteirões), retornando ao meio dia, também caminhando, para o almoço. Logo depois, novamente retornava a pé para o trabalho. Às cinco e trinta da tarde deixava a loja retornando à minha casa, onde jantava e em seguida, novamente a pé, deslocava-me para o Colégio, que ficava a cerca de trinta quarteirões de minha casa. As aulas eram encerradas as onze da noite.

Não era o único empregado da loja. Havia um jovem vendedor de nome Cardoso e um senhor de nome Geraldo, lá pelos quarenta anos, que fazia um trabalho misto de vigia e zelador. Varria a loja, desencaixotava os móveis, limpava os banheiros e dormia num quartinho situado nos fundos da loja. Uma vez por mês tinha folga durante o fim-de-semana para visitar sua família que morava no sertão.

Estava já no segundo mês de trabalho na loja quando houve um fato que me marcou profundamente. À tardinha lá pelas cinco, era intenso o movimento de pessoas que passavam na frente da loja em direção ao centro da cidade. Entre elas havia muitos estudantes caminhando na direção do terminal de ônibus para o retorno aos seus lares. Certo dia, um grupo de três jovens, vestidas com suas bem cuidadas fardas de blusa branca e saia cinza, longa, com duas fitas horizontais de cor mais escura próximas à bainha, caminhavam conversando animadamente. Uma delas sobressaia das demais por sua beleza e gracioso andar. Era deslumbrantemente bela. Tinha a tez moreno-clara e densas madeixas que caiam livremente sobre os ombros até quase o nível da cintura. Apesar da longa saia, era possível divisar as pernas torneadas no limite da perfeição. A primeira vez que a vi não fui sequer notado. Estava tão entretida na conversa com suas amigas que me ignorou por completo. Fiquei a tocaiá-la nos dias seguintes. Quando se aproximava o seu horário, estava eu lá, ansioso à espera de sua passagem, a espreitá-la. Depois de vários dias, finalmente, nossos olhares se cruzaram. Foi um choque para mim ter a certeza de ser notado. Finalmente tornei-me real para ela, existia, pois minha figura fora, mesmo que por um breve instante, gravada em sua retina.

Os dias passavam e nossos olhares continuaram a se cruzar. Tive a nítida impressão de que era correspondido. O problema era: como abordá-la. Ela passava rapidamente. Eu a via por instantes. Ademais era muito tímido. Nunca namorara antes. Ela seria a primeira. Guardei segredo. Não dividi minhas ansiedades nem mesmo com meu irmão mais velho, meu principal confidente, já experiente, pois namorara várias garotas.

Encontrava-me apreensivo em descobrir uma maneira de abordá-la, pelo menos saber seu nome. Estava nesta expectativa quando um fato novo ocorreu e o destino acabou conspirando contra os meus sonhos.

O Sr. Geraldo era crente e com frequência pregava a palavra do Senhor tendo a bíblia como o norte de sua vida. Defendia a virtude e combatia o pecado, inclusive o carnal, origem, segundo ele, da desarmonia das famílias e de quase todos os males humanos. Parecia ser uma pessoa virtuosa e correta. Parecia. Os fatos seguintes revelarão que não era bem assim. Ao final de uma tarde, foi procurado na frente da loja por uma jovem senhora em visível estado de gestação. Conversaram por apenas alguns minutos. A jovem logo se afastou. O Sr. Bento os viu conversando e ficou desconfiado. Ao deixar a loja ao final do expediente, postou-se na espreita, escondido numa galeria próxima. Não demorou muito e a jovem retornou. O Sr. Geraldo levantou a porta corrediça e permitiu que a gestante entrasse. Passado algum tempo, o Sr. Bento entrou na loja, com o fito de flagrar o encontro dos dois. A porta do fundo da loja estava atravancada por dentro. Depois de insistentes batidas o zelador finalmente abriu-a permitindo a entrada de seu patrão. Perguntado pela jovem que há pouco havia entrado, ele negou peremptoriamente. O Sr. Bento vasculhou todo o interior da loja e não encontrou viva alma. Ao cabo de algum esforço investigativo notou junto ao muro, no quintal, vários tijolos formando uma espécie de pilha por onde a inditosa jovem poderia ter escapado. O Sr. Geraldo, por fim, acabou revelando que ela, para não ser flagrada, pulara o muro de mais de um metro e meio de altura, colocando em risco sua vida e a do rebento que carregava no ventre.

No dia seguinte fui informado do ocorrido e da demissão sumária do zelador. Não bem entendo ainda hoje o excesso de zelo do Sr. Bento em punir o seu empregado por manter encontros furtivos com sua amiga. Quem sabe não seria ele o pai da criança gerada no útero da jovem mulher? Talvez a distância e a separação da família o tenha induzido à prática do adultério por ele hipocritamente tão criticado ao pregar a palavra do Senhor. As motivações de um e outro são irrelevantes à minha narrativa. O que importa é que a partir daí começaram meus problemas. O Sr. Bento decidiu que eu deveria assumir as tarefas do Sr. Geraldo. Ou seja, deveria varrer a loja, o galpão dos fundos, desencaixotar os móveis e mercadorias chegadas, e mais, lavar os banheiros. Além dos serviços de contínuo e de vendedor.

Destarte, aos quinze anos de idade, aluno do primeiro ano científico Colégio São João, filho de uma família de classe média, estava na iminência de me tornar um reles operário de limpeza de chão e latrinas de uma loja no centro de Fortaleza.

No retorno à minha casa pensei em desistir, falar para meu pai que não poderia aceitar os novos termos de meu emprego. Fui matutando como daria a notícia. Certamente minha família entenderia a desistência. Depois de muito pensar decidi silenciar e assim sonegar de meus familiares minha nova situação na loja. Não tive coragem de desistir, ou, melhor dizendo, tive coragem suficiente para arrostar todos os problemas que enfrentaria. Preferi acatar a humilhação das novas funções a acovardar-me. Seria fraqueza de minha parte simplesmente desistir, não enfrentar o problema. Afinal a iniciativa de procurar trabalho fora minha. Meu pai já contava com a ajuda. Se soubesse da novidade certamente não aceitaria o meu sacrifício. Mas, e a mensalidade de meu colégio? E o dinheiro que dava a meu pai para compor o combalido orçamento familiar?

Restava ainda um problema a resolver: a aluna do Lourenço Filho. Havia a possibilidade de ser denunciado aos seus olhos em minhas novas e nada nobres funções. Como iria ela reagir ao saber que o seu novo amor (assim me julgava) não passava de um reles varredor de loja? Talvez pudesse contornar este problema. Ela só passava em frente à loja ao final da tarde. Poderia varrer a loja pela manhã eliminando a possibilidade de ser por ela flagrado. Ademais, talvez não ficasse durante muito tempo com esta tarefa menor. Talvez, quem sabe, com a continuação, meus patrões viessem a contratar um novo zelador. Tomei a decisão e guardei segredo dos meus pais e familiares.

A partir do dia seguinte, estava eu de vassoura em punho cuidando da limpeza da loja. Fazia isso cedo, ao chegar ao trabalho para evitar ser visto por algum conhecido que transitasse em frente à loja. Queria evitar, principalmente, o olhar da Menina do Lourenço Filho, bem assim o testemunho de algum colega de colégio ou mesmo pessoa de minha família.

Embora o ditado popular diga que o raio não cai no mesmo local duas vezes, no meu caso caiu. A loja vizinha fechou e em seu lugar estava sendo instalado um restaurante. A reforma e adaptação do antigo prédio produziu muita poeira que invadiu sem pedir licença a loja em que trabalhava. Em conseqüência o Sr. Bento passou a reclamar da limpeza da loja. Apesar de meus extremados cuidados, sempre a poeira subia quando passava a vassoura, para voltar a depositar-se placidamente sobre o piso e os moveis, alimentada por mais poeira que vinha do prédio vizinho. O Sr.Bento já exigia varrição pela manhã e à tarde. Como continuava flertando com a Menina do Lourenço Filho fiquei apreensivo em ser flagrado de vassoura em punho. Para evitar esta possibilidade varria a loja cedo na manhã ao chegar ao trabalho e cedo na tarde, logo que retornava do almoço. O problema é que a poeira aumentou muito e eu já não dava conta de sua remoção aos olhos exigentes do meu patrão.

Sabia que ele não estava satisfeito mas não imaginava o que estava maquinando. Determinou que me dirigisse a uma serraria situada próxima à loja e em seu nome solicitasse serragem (raspa) de madeira. Para que diabos o velho queria a serragem era uma grande incógnita. O dono da serraria permitiu que eu enchesse dois sacos de estopa com a serragem solicitada. Sem saber a que propósitos estava levando a serragem, inocentemente cumpri a determinação de meu patrão, como um condenado caminhando para a execução, chegando à loja ofegante, mais pelo desconforto do grande volume que pelo peso do meu fardo.

À tarde, o Sr. Bento encheu um balde com a raspa e adicionou água. Duas horas depois chamou-me para levar o balde com a raspa já embebida com a água e distribuí-la por todo o piso da loja. Ele mesmo participou da distribuição. Depois, falou-me: recolha a raspa com a vassoura; ela trará impregnada a poeira depositada no piso. Quando terminamos a operação era próximo das cinco horas, horário em que a Menina do Lourenço Filho costumava passar em frente à loja. Fiquei apreensivo, temendo ter meu segredo revelado. Iniciei o mais rápido que pude a remoção da raspa. Infelizmente o pior aconteceu. Estava eu de vassoura em punho quando aparece de repente a minha Menina. Nossos olhares cruzaram e num átimo de segundo me dei conta que meu segredo fora revelado. Aos seus olhos apareço por inteiro como um simples varredor de loja. Ela, subitamente, desvia o olhar, acelera o passo e caminha rapidamente como se estivesse em fuga. E estava. Naquele momento tive a convicção que meus sonhos tinham desmoronado. Parei por um breve momento o meu trabalho. Senti um misto de tristeza, decepção e raiva. Meus olhos ficaram rasos de água. A partir daquela data ela desistiu de mim, se é que em algum momento havia alimentado interesse. Passou a usar a outra calçada. Nunca mais nossos olhares se cruzaram. Tudo havia acabado. Era o fim. O pior fim. O fim de algo que terminara sem começar.

Era, à época, apenas um adolescente inexperiente com os embates da vida. Sofri muito com o desenlace. Sofri sem pressa, para reduzir os danos causados à alma. Afinal, aprendi que diluir o sofrimento ao longo do tempo ajuda a amenizá-lo. Durante muito tempo guardei esta decepção só para mim. A dor exige pudor. O sofrimento é uma espécie de nudez a ser preservada.

Chico Tavora
Enviado por Chico Tavora em 16/10/2016
Código do texto: T5793837
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