Marilda estava aflita — vinha aí o Dia dos Namorados. A televisão berrava, oferecendo presentes a preços módicos. Tentou não prestar atenção.

Desligou a TV e foi para o computador — dezenas de banners ofereciam outra centena de bugigangas com o mesmo motivo. Corações multicoloridos espocam na telinha para que não se esquecesse  que não tinha a quem presentear. Uma sensação de que não pertencia a esse mundo, de repente, invadiu sua alma.
 
Meio que desiludida desistiu dos emails que pretendia responder e ligou o rádio. Uma após outra, as canções de amor acabaram por fazê-la se sentir a pior das criaturas.

Rápida, regredida à condição de devota de imagens milagreiras, procurou nas gavetas aquele velho e rachado Santo Antônio, presente da avó quando ela era uma menina. “Afinal ainda é sexta-feira e o dia dos namorados só será no domingo”, pensou.
 
Revirou roupas, vasculhou fundo de armários e encontrou, na sapateira, o santinho de madeira. Empoeirada, a imagem precisava de um banho.
Água, um pano rasgado, e o santo estava pronto para ser reverenciado. E rapidinho porque o tempo era curto e ele teria que dar conta do recado em menos de dois dias.
 
Na cozinha, numa prateleira meio escondida, uma vela foi acesa ao lado da imagem: vela comum, dessas que são usadas quando a luz acaba.
 
— Dá um jeito, rapaz! Quero alguém até domingo. Sou a única criatura, no mundo, que não tem um namorado. Quebra o meu galho e me arranja alguém, tá certo? — falou alto, à guisa de reza. Mas o santinho, embaçado pelo tempo e pelos maus tratos, não respondeu.
 
Mãos na cintura, Marilda se afastou um pouco e ficou olhando, fixamente, como se esperasse uma resposta. Mas ele continuou lá, quieto, com seus olhinhos desbotados, impassível.
 
Coçando a cabeça a mulher tentou se lembrar de como era mesmo que as moças faziam para convencer o santo a lhes arranjar um noivo. De repente a lembrança de uma empregada de sua mãe, tirando o menino Jesus do colo do santinho, lhe veio à memória. “Isso mesmo! Ele fica maluco sem o menino! Faz qualquer coisa para tê-lo de volta!”, lembrou.
 
Rapidamente agarrou a imagem, desamarrou a velha fita vermelha e tirou o minúsculo garotinho:
— Só devolvo depois que você me arrumar um namorado, ouviu? — falou alto, triunfante.
 
Saiu da cozinha, desligou a luz e foi se deitar porque já era quase meia-noite, levando o menino.  E o guardou na gaveta da mesa de cabeceira.

No dia seguinte acordou com o som insistente da campainha da porta. Levantou, zonza de sono, e deu de cara com o porteiro. Ele trazia um telegrama. Aflita, abriu o envelope pardo e leu: “Devolva o menino ou não respondo por mim. Antônio.”
 
Atônita, tremendo de medo pelo que fizera na véspera, correu para colocar o garotinho de madeira no braço do santo. Amarrou com a mesma velha fita vermelha e se desculpou pelo transtorno e pela pouca fé.
Novamente a campainha da porta soou, insistente. Era o porteiro que retornava, sem jeito:
 
— Desculpe, mas é que entreguei aqui, por engano, o telegrama pra dona Clotilde.
 
Pasma, Marilda foi até a casa da vizinha, levando o papel que recebera. Na porta, Clotilde suspirou ao ler a mensagem:
 
— Ë o meu ex-marido me ameaçando porque peguei meu filho na casa dele e não levei de volta. Esse Antônio é uma peste!
 
                   
 
 
A ALMA DE UMA CONTISTA IRREVERENTE
Enviado por A ALMA DE UMA CONTISTA IRREVERENTE em 13/10/2016
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