O sítio e seus inquilinos bizarros
Era início dos anos cinquenta. A casa grande com o arvoredo em volta constituía, já naquela época, uma das últimas chácaras do perímetro urbano da cidade. Situada no centro do terreno de aproximadamente uma quadra, tinha um aspecto desolador, contrastando com a beleza da vegetação constituída de árvores de grande porte, algumas centenárias, e mais o riacho pajeu a serpear no seu sinuoso leito.
A velha casa havia sido construída há mais de um século. Os sinais do tempo e a falta de conservação tornavam-se visíveis nas paredes carcomidas, onde as falhas no reboco desnudavam os tijolos também já bastante erodidos. Era imensa aos meus olhos de criança. Cercada por amplas varandas na frente e nas duas laterais, continha diversos compartimentos no vão central. Seu piso era pavimentado com tijolo tosco.
Os dois lados do velho casarão eram ocupados por grupos distintos de pessoas, separadas, cada qual com seu cotidiano independente. O esquerdo, por uma velha quase centenária, cega, paralítica, a vegetar seus derradeiros dias. Proprietária da chácara e de dezenas de outros imóveis, já nas mãos dos filhos, estava aos cuidados de uma sexagenária, de nome Carolina e apelido Caroba. Ainda nesta ala da casa habitava, de favor, um mendigo de nome Cibite, que usava o alpendre para armar sua tipóia onde passava a noite, pois ocupava o resto do dia perambulando e mendigando pelas ruas da cidade.
O Cibite era amalucado, imaginava ser um radialista dono de uma "emissora de rádio" que funcionava num cantinho do alpendre. Lá realizada seus programas de rádio usando como equipamentos latas e garrafas conectadas por barbantes e cordões velhos formando um cipoal de fios e conectores imaginários. Em suas fantasias entrevistava personalidades, principalmente jogadores de futebol; irradiava jogos, fazia programas de auditório, comuns naquela época. Tinha um pequeno defeito físico, que o fazia andar mancando, motivado pela atrofia da musculatura de uma perna, talvez por ter contraído poliomielite quando criança, doença comum naquela época. Assim, o mancar acabava por bem caracterizá-lo como mendigo o que certamente favorecia-lhe na obtenção das esmolas das pessoas caridosas, em seu périplo cotidiano.
A outra banda da casa era habitada por três pessoas adultas: duas mulheres quarentonas, Bibi e Mariquinha, e mais seu irmão Chiquinho, um pouco mais jovem. Bibi era negra, descendente de escravos. Mariquinha e seu irmão Chiquinho eram muito brancos, certamente descendentes diretos de portugueses emigrados. Como o trio de inquilinos chegou lá não é de meu conhecimento. Talvez alguma relação antiga com a dona da casa, a velha quase centenária.
Mariquinha tinha uma sobrinha que a visitava com freqüência. Chamava-se Vanda, era casada e mãe de três filhos - uma mocinha e dois meninos. Como o marido, boêmio, não provia convenientemente o sustento da família, depois de enfrentar dificuldades na busca de trabalho honesto, viu-se compelida a ingressar no caminho fácil da prostituição. Tornara-se puta para prover o sustento de sua família. Às vezes deixava seus filhos sob a guarda da tia para fazer seus programas noturnos, imagino, bastante lucrativos. Vestia-se de modo provocativo carregando a face com rouge e os lábios com batom, deixando transparecer de forma insofismável sua condição de mulher da vida. Como a tia era muito católica, por certo, o comportamento da sobrinha não deveria ter sua aprovação. Apesar dos constrangimentos causados, Vanda, a sobrinha, não encontrara outra alternativa rentável para prover o sustento da família desamparada pelo irresponsável marido.
Bibi, Mariquinha e Chiquinho sobreviviam de lavar e passar roupa das famílias que moravam nas vizinhanças. Chiquinho era também exímio costureiro, especialista no reparo de roupas puídas, esgarçadas ou rasgadas. Tinha a rara habilidade de deixar imperceptíveis os rasgões ou rupturas dos tecidos com o seu cerzir. Naquela época as pessoas usavam as roupas e os sapatos até a exaustão. Assim, um pequeno rasgão ou o esgarçar do tecido de uma roupa era reparado por mãos habilidosas como as do Chiquinho. Os sapatos recebiam também várias substituições do solado, havendo duas modalidades: meia sola ou sola inteira, dependendo do desgaste e também dos recursos do dono.
Chiquinho era de pouca conversa. Falava por monossílabos. Era muito tímido. De corpo tão franzino, que imagino, hoje, sua magreza como fruto da timidez. Sentia muita vergonha das visitas. Costumava abrigar-se num quartinho só seu nos fundos da casa ou fugir da casa em procura do arvoredo quando pessoas vinham em visita. Era, como o Cibite, também aloucado. Mas um louco manso, calado, tímido, inofensivo. Sempre risonho. Gostava de rezar. Era temente a Deus. Tinha um cordão com uma medalhinha da Virgem pendurada ao pescoço. Tinha períodos de completa reclusão. Ausentava-se de todos. Construíra uma casinha com tábuas velhas bem no alto da copiosa copa de uma tamarineira um pouco arredada da casa. Com o auxílio de uma escada de corda e tábuas alçava o cimo da árvore e lá, ao recolher a escada de modo a impedir o acesso de qualquer pessoa ao seu abrigo, ficava isolado do mundo e de todos. Compartilhava seu espaço apenas com os seus amigos, tangíveis como os pássaros e etéreos como o seu Deus e os seus Santos.
Suas companheiras deixavam seu repasto sobre o grande e tosco fogão a lenha ao final do dia. Enquanto todos dormiam, ele descia sorrateiramente e fazia sua refeição única, na solidão da noite. Depois retornava ao seu abrigo. Às vezes passavam-se semanas nessa reclusão voluntária, até que decidia voltar ao convívio dos seus, porém sem manter qualquer contato com o mundo exterior, com os clientes que acorriam à chácara.
Eu e meus irmãos morávamos numa casa, com fundo do quintal correspondente com o “sítio”, pois era assim que chamávamos a grande e arborizada chácara. Assim, passávamos parte de nosso tempo de lazer brincando na grande casa e suas cercanias, caçando com baladeira, lagartixas, tijubinas e variados tipos de passarinhos. Às vezes, escondido de nossos pais, usando minhoca coletada no baixio do terreno, pescávamos cará e piaba no riacho pajeú que corria ao longo do terreno da chácara.
Chiquinho nos aceitava bem. Talvez por julgar-nos quase um seu igual. Tinha a mente de uma criança. Era dócil e ingênuo. Quase fazíamos parte de sua família, pela proximidade, pois éramos vizinhos, e pela freqüência com que íamos visitar seu reduto.
Sua irmã, Mariquinha dizia que ele tinha sido até os oito anos um menino normal. Entretanto um homem perverso o havia segurado pelos calcanhares e simulado jogá-lo dentro de uma profunda cacimba. Ele apavorado gritou e debateu-se durante algum tempo. Quando o homem, ao final resolveu acabar com a perversa brincadeira e retirou-o de dentro da borda da cacimba, colocando-o em terra firme, ele ficou transtornado e não mais se recuperou da crise nervosa de que fora acometido. Teria sido verdade? Quem sabe. Talvez sua irmã tenha inventado esta estória para esconder a debilidade mental congênita do irmão mais novo que criou com muito amor e desvelo.
Morei nas proximidades do “sítio” até os dez anos. Mudamos para um bairro distante em uma casa herdada por minha mãe pela morte de meu avô materno. A partir daí perdi o contato quase diário que tinha com meus personagens de infância. Soube depois que com a morte da velha anciã, proprietária do casarão, os moradores ali permaneceram ainda durante algum tempo.
Após a morte do Cibite, que foi primeiro e depois da velha Caroba, os três outros moradores: Mariquinha, Bibi e Chiquinho, ganharam de presente dos filhos da anciã uma casinha de porta e janela, sem quintal, num bairro próximo.
Fico a imaginar as mudanças ocorridas na mente do Chiquinho. Trocar a vastidão do sítio com suas árvores e pássaros, sem esquecer o seu refúgio encarapitado no alto da frondosa copa da centenária tamarineira, por uma casinha apertada sem árvores e sem o canto dos pássaros. Para ele deve ter sido uma verdadeira prisão.
Já adulto, cheguei a visitá-lo, velhinho, o rosto vincado, desfigurado pela erosão do tempo. Mantinha o hábito de rezar. Buscava na fé o lenitivo para uma vida vazia. Talvez tenha sido feliz. Sempre tivera a proteção da irmã branca e da amiga preta.
Mariquinha foi primeiro. Depois ficaram ele e Bibi. Não durou muito. Acho que a ausência da irmã deve ter antecipado sua existência com a perda da vontade de viver. Assim, deve ter-se, com a aquiescência de seu Deus, demitido voluntariamente da vida. Apesar de simplória aos olhos do mundo, deve ter tido uma vida feliz, em paz nos seus limitados horizontes, com os poucos amigos e protetores na terra e seu Deus acompanhado de todos os santos de sua crença no céu.
Fui ao seu enterro, franciscano como sua vida, no cemitério São João Batista.
A eles sobreviveu a negra Bibi. Quando ficou só, mudou-se para Brasília onde terminou seus dias na casa de parentes.
Hoje, avançado nos anos, retorno ao sítio, transformado numa bem cuidada praça tendo como inquilinos permanentes apenas as plantas e os pássaros. Invade em minha alma a saudade dos tempos de menino, principalmente quando me quedo absorto no passado diante do velho tamarindo, hoje desprovido de seu adorno maior: o abrigo do Chiquinho encarapitado no cimo de sua frondosa copa.