CANÇÃO DE NINAR

O asfalto brilhava sob as luzes dos carros e das luzes alaranjadas dos postes. O dia ainda estava claro, mas o céu era de um cinza escuro que há dias chorava sem dizer o motivo. O vento era gelado e, por alguns instantes, a garoa encorpava e tornava-se chuva leve... Era o choro mais doloroso, daqueles que não se pode mais segurar, mas que dura pouco e depois volta ao choro contido.

Vermelho. O carro estava parado e ele passou a mão na cabeça e depois na garganta que doía. Já estava próximo de casa e paradoxalmente queria chegar o quanto antes e, no entanto, virar a primeira direita e sumir no mundo. Verde. Seguiu caminho.

De dentro do carro, via as luzes acessas da varanda. Estacionou, saiu do veículo e subiu apressadamente os três molhados degraus de madeira pintados de branco que o levava até a varanda pintada de um verde muito claro. Não percebia mais chuva, nem cor e nem frio. Teve uma vontade enorme de chorar, mas segurou. Os seus dias têm sido muito pesados depois que sua mãe - Dona Nina - ficou enferma de cama devido a uma infecção. Jamais aceitara colocá-la em uma casa de repouso e há pouco tempo, dividia-se entre a tarefa de cuidá-la e trabalhar.

Uma jovem moça veio recebê-lo na porta, seus olhos estavam lacrimejados. Ele não perguntou nada, sua garganta doeu mais e sem poder falar nada entrou apressado. O ar tinha um cheiro específico de medicação. Foi em direção ao um quarto que ficava logo ao lado do hall de entrada. Sua mãe estava acordada, deitada sobre a cama, os cabelos brancos ondulados soltos, os lençóis brancos com detalhes azuis bordados por ela mesma quando ainda tinha saúde. Mal conseguia mexer a cabeça, mas fez o que podia e deu um pequeno sorriso ao ver o filho, mas logo seu rosto foi tomado de uma dor e algumas tosses. No quarto, também estavam o médico que fora chamado e que guardava uma seringa que havia acabado de usar para aplicar morfina e sua irmã que chorava e segurava um lenço azul sobre a boca. O médico fez um gesto para ele e ambos saíram do cômodo.

No hall de entrada, havia algumas pessoas – eram netas, sobrinhas, primos e primas – todos tinham os olhos vermelhos e ele nem as tinha notado a presença quando entrou. Sua vontade foi de explodir em choro, mas segurou para não desesperar os outros que apesar das lágrimas, ele sabia que estavam sendo fortes com toda a força que eles possuíam. O médico disse, em meio ao cochicho, que a situação de sua mãe era muito delicada e que muito provavelmente ela não acordaria amanhã.

Uma dor, maior que aquela que fincara seu coração nos últimos dias, acertou seu ser que, naquele momento, também se despedia de uma parte de si. Seus olhos inundaram-se e o médico, sem força para enfrentar aqueles olhos afogados em dor, abaixou a cabeça.

Tirou a blusa, olhou para todos que ali estavam e voltou para o quarto onde estava sua mãe. Foi seguido pelo médico e pela sua esposa.

Sua irmã ainda estava em pé em frente à cama. Ele agachou-se perto da cabeça da mãe e encostou-se na mesinha sobre onde havia um abajur que ele ganhara dela quando ele ainda tinha sete anos... Ela perguntou, com uma voz muito baixa, se ele estava com fome e se queria café. Ele sorriu e disse que estava tudo bem – sua voz saiu um pouco tremula e embargada devido à dor do choro contido.

Ele sabia que sua mãe, cujo amor pelos filhos era maior do que qualquer coisa, preocupar-se-ia com eles até o último instante. Lembrou-se das vezes que ele e os irmãos sentavam-se no chão para comer, porém seu pai e sua mãe não, e quando a estes era perguntado por que não comeriam, o motivo era que não estavam com fome naquele momento... Quando cresceu, aprendeu que eles não comiam porque não tinham o suficiente. Ele aproximou-se do ouvido mãe:

_ Estamos bem, de verdade. Está tudo certo e tudo – sua voz embargou – vai ficar bem. Eu tomo conta de tudo.

Uma lágrima escorreu pelo rosto enrugado de sua mãe que olhava para o teto. Ele percebeu e a secou com o polegar e continuou:

_ Agora a senhora precisa descansar um pouco. Passou no jornal hoje, que amanhã vai fazer sol. Se fizer, eu levo a senhora até a varanda.

Ele abaixou a cabeça, segurou o choro e começou a cantarolar uma canção de ninar para sua mãe.

“Boa noite meu anjo,

é hora de fechar os olhos e esquecer todas as preocupações.

Você nunca deixará de estar comigo e a qualquer lugar que você for eu estarei com você.

Boa noite meu anjo,

é hora de dormir e descansar o corpo e a alma.

Há tanto que eu deveria ter tido e não disse.

Mas amanhã, nos encontraremos, e em meio a um abraço apertado eu direi mil vezes ‘eu te amo’.

Boa noite meu amor maior,

é hora de sonhar. Um sonho de uma vida cheia de alegrias, rodeada de pessoas amadas.

Desculpe-me todas as vezes que, de alguma maneira, eu te magoei.

Boa noite meu anjo,

é hora de dormir e se amanhã a senhora já tiver partido,

que Deus nos guie e, em breve, te encontro do outro lado.

A senhora sempre será parte de mim..”

Um choro mais longo interrompeu a canção. Ele olhou para a irmã e em seguida mirou o rosto da mãe. Ela estava de olhos fechados, não havia expressão de dor e nem de tristeza. Ela dormia... Ele sabia o que aquilo significava. Segurou forte a mão daquela mulher que lhe dera a vida milhares de vezes, a beijou e sentiu o perfume de sua carne. Sua irmã se entregava à dor... Sua esposa estava ao seu lado e o abraçou depois que ele se levantou. Ele chorava, mas ainda era um choro contigo. Depois de abraçar sua esposa, ele deixou o quarto. Sem ver ninguém em seu frente, foi para a varanda e viu a cadeira onde costumava colocar sua mãe: o vazio apertou fortemente alguma coisa dentro do seu estômago. Foi então em direção à pequena estrada que dava para o portão... Não conseguia continuar forte.

Entregou-se ao choro. A garoa virou chuva, e a chuva virou tempestade... Seu choro era um grito de dor que impulsionava seu peito com força. Ajoelhado, na lama, coberto de dor, sem luz, sem sentido. Por que nascemos? Por que morremos? Por que essa dor é tão grande que corrói o interior de alguém que simplesmente ama? Ama com tudo o que tem e que pode. Desejou intensamente voltar ao passado para que pudesse ter a chance de ser uma pessoa melhor.

Uma voz doce, um pouco receosa misturada a um choro que não se entende o porquê, o despertou, por alguns segundos, de sua dor. Ele olhou e viu sua filha de cinco anos, molhada e com os olhos vermelhos. “Não chora papai, a vovó vai ficar bem... não vai?”

Chorando, ele confirmou com a cabeça e a tomou em seus braços... Ela, naquele instante, era a coluna que o mantinha em pé... Sem saber o que falar, ele chorou, apenas chorou. O choro mais doloroso, mais difícil de chorar... E com dificuldade, olhou para a filha e disse que a amava. Amava-a muito e muito.