O HOMEM QUE NÃO DORMIA

Pedro Natalêncio foi um desses cabras sem sorte. Numa queimada da broca de João Severiano, Natalêncio, o pinguço como era conhecido na cidade, dormiu no meio do mato seco sob efeito da cana. Acordado pelas chamas que consumia seu chapéu de coro de bode e suas finas pernas, Natalêncio teve parte da cabeça e dos olhos queimados.

A desgraça do pinguço foi eterna, tempos sem invenções científicas e sem avanços medicinais. Os supercílios queimados foram à primeira desgraça observada por João Severiano, quando o queimado surgiu na roça em chamas, pernas cinzentas e parte da cabeça vermelha. Na agonia, Severiano tirou sua camisa velha e o abandou apagando os últimos resquícios de fogo, não sentia dor, achava graça da desgraça. Os outros, o colocaram na carroça. Foi um longo caminho, abrindo e fechando colchetes, córregos e buracos até chegar à vila.

A recuperação de Natalêncio foi à base de chás, bosta de galinha choca e rezas brabas... Depois de um tempo, Natalêncio buscou os escritórios da cidade, em busca de beneficio por incapacidade. Aprovado somente a metade pela mulher de óculos e bem vestida da cidade, encarregada dessas coisas, ao ouvir o relato dos acontecimentos da queimada e os fatos comprovados por dois de seus compadres, não gostou. O governo enviava todo mês 50 contos de réis.

A vida de Natalêncio era só descanso, mas não podia dormir, sempre acordado passava a maior parte do tempo no alpendre de seus velhos pais, as crianças da vila o chamavam de o ‘monstro pelado’ e o ‘sem sobrancelhas’. Não se incomodava.

Não deixou de tomar cana e comia pouco, eram sinais que deixavam seus amigos cabreiros com seu estado.

Na bodega, Pedro Natalêncio relatava acontecimentos noturnos. Eram ocorrências noturnas da vila: Cachorros que comiam galinhas; brigas de bêbados nos terreiros e hora e a duração das chuvas na época de inverno.

De inicio, era diversão ouvir o que não era visto, mas com o tempo a caguetagem de costumes noturnos de caboclos começaram a incomodar.

O primeiro foi o Chico das cabras, descoberto por Natalêncio roubando espigas de milho nos terrenos dos Felences durante a madrugada. O velho João Felence, a pá do ocorrido em seu milharal, olhando as espigas, encontrando várias delas amassadas, outras com bostas de jumento para preencher o vazio deixado, ficou furioso. Chico das Cabras para não morrer de tiros, fugiu antes que os Felences o tirassem seus coros no terreiro de sua própria casa.

Depois veio o caso do Padre Alcantro. Essa historia começa a ter cabimento quando Antônia das galinhas perdeu seu marido, morto com uma mordida de jararaca quando estava tentando tirar o peba da loca. Desamparada, Antônia das galinhas buscou conforto ‘espiritual’ na capela da vila, com exceção das segundas feiras, todos os dias, estava nas missas de 7 da manhã e das 7 horas da noite, lá estava ela, sentada no primeiro banco, defronte, olhando para a batina do padre.

Dizia Natalêncio que Antônia se encontrava por detrás da capela com um homem de pernas alvas, comiam pão e bebiam algo, depois começavam o esfregão próximo a cerca da capela, o homem levantava a saia de Antônia e começava os gemidos, discretos, mas quando os galos cantavam, Antônia gemia mais forte, os sons juntavam-se.

A historia enfureceu o Padre Alcantro, que não admitiu invenções dessas historias próximo do templo do senhor, muito menos um ato praticado debaixo de sua batina. Furioso, decretou segundo as leis católicas Natalêncio como louco, O chefe religioso, não teve apoio da gente, por ser morador de curta data na vila, advindo de uma paroquia distante, de uma cidade grande e a mesma sempre exaltada pelo paroquio diminuindo a pequena vila onde agora se encontrava, corria um boato desde sua chegada que as marcas em seus pés eram de chumbo de espingarda e não de nascença como falava sempre. Escolheram confiar em Natalêncio.

Pedro Natalêncio, depois de uns meses sem fechar os olhos, teve como consequência a secura dos olhos, não adiantava mais beber tanto chá de casca de laranja e de cidreira, nem muito menos colocar coro de vaca preta benzido por uma rezadeira. Não fecharia mais os olhos.

Houve o caso de João Capiraba, trabalhador honesto, vivia queimando caieiras na beira do rio, todo dia na semana, menos aos domingos. Sua mulher, a dama Elvira, passava os dias ausentes do marido em casa, raramente acompanhava Capiraba, queixava-se do calor da caieira que era similar ao quintos dos infernos. Segundo Pedro Natalêncio, o Chico da bodega pulava a cerca, entrava pela faxina, pulava a janela do monturo e entrava na casa de Capiraba, saindo dois quartos de horas depois todo suado, parecia que havia queimado três caieiras de tijolos seguidas colocando lenhas sem parar. Capiraba confiava na sua mulher como confiava em seu jumento, foi mais um a pregar a loucura de seu velho amigo Natalêncio. Chico bodegueiro proibiu a presença de Pedro Natalêncio em sua venda, com juras de chumbo no rabo caso aparece com sua língua de tamanduá.

Natalêncio, agora vivia somente no alpendre de seus pais, saia raramente apenas para buscar o gado, deixou de ir à casa de Felisberta Aragão, prenda negada pela família, após torna-se o centro de rumores e conversas não muito boas. À noite, ficava até às duas horas olhando o céu estrelado, fumava seu cigarro, depois entrava pra dentro de casa, andava, hora ia ao terreiro urinar, de vez em quando abria a janela para olhar seu cachorro Pagenor que latia com algo e por fim se dirigia ao pote para beber água. Seus movimentos já eram conhecidos.

A desgraça se tornou maior na época em que os caboclos da vila estavam próximos de votarem na cidade. Natalêncio falava pros compadres que colhiam espigas que o coronel Budogario Fernandez estava comprando votos durante a madrugada na bodega do Chico. Ninguém deu cabimento, riam e tiravam sarro dele toda vez que passava, o chamava de “o sabe de tudo”; “o curicaca”, e o ameaçava de corta a língua.

O tempo passou. Um dia, João Capiraba procurou em todo canto por sua mulher que estava buchuda, perguntou morador por morador sobre seu paradeiro, em vão. Desesperado, pastorou Natalêncio no colchete das vacas e desembuchou. Natalêncio olhou para o céu sem nuvens, para a sequidão nas paisagens, escutou o distante cantar das cigarras, depois disse.

- o cigano levou sua mulher anteontem, comia ela todo no chiqueiro dos porcos, deve estar pra lá dos cafundós dos Judas.

Estranho, ver um filho ser levado por apenas uma pessoa, num caixote de mufumbo, muitos nas janelas, escondidos nos matos e dois velhos atrás, sua mãe e seu velho pai, recém-chegado do Sul.