Jarbas o Rei do Aguilhão

Jarbas, O Rei do Aguilhão.

Foi por volta de 1946, era época das chuvas, mês de dezembro, estava chovendo, tudo estava molhado, chovia à dias, noite e dia, dia e noite, a toda hora. Chovia e fazia sol, abria o sol e chovia. Era assim. Um tempo gostoso! Mas a lama nos currais estava chegando ao joelho dos vaqueiros, pela constante lida com o gado.

A fazenda Saquinho estava muito movimentada naqueles dias, pois hospedava o boiadeiro, Major Jeferson, homem mais rico que costumava passar por aquele rincão. Era dono da famosa fazenda Mamoneira no município de Paracatu/MG, e boiadeiro mais conceituado do Urucuia. Ele mandava as grandes boiadas para Barretos/SP.

Os paStos da fazenda Saquinho estavam saturados de tanto gado, daquele boiadeiro que via de regra,vinha todos os anos comprá-lo no Urucuia e ia juntando-o na aludida fazenda.

Comprava tudo que aparecia. “De mamando a caducando.” Se fosse gado bovino, ele comprava. Macho e fêmea, não importava. Batava combinar no preço. lógico, que ele estipulava. Afinal era ele o único boiadeiro na região. Se outro comprasse, vendia era para ele.

Jarbas veio da fazenda Zumbi trazendo uma “maloca” de gado: umas vinte e poucas cabeças que o tio Zinho havia vendido.

A distância sentiu o cheiro de pêlos e couro queimado pela marcação do gado, a ferro incandescente. Na fazenda havia tanta gente que parecia uma festa. Cavalos selados existiam amarrados por todos os lados, nas cercas e árvores. Homens também por todo lado: sentados na cerca dos currais ou dentro deles; pastoreando o gado nos vaquejadores, etc.

Zé Papo com o seu velho chapéu ensebado abanava o braseiro de lasca de aroeira para mantê-lo aceso esquentando os ferros de marcar.

Na casa do carro-de-boi, se encontravam pendurados os quartos de carne de uma novilha grande e gorda, que ao tentar saltar a cerca quebrou uma das patas e o boiadeiro a mandou sacrificá-la e a doou para a turma presente fazer um churrasco, reservando apenas os contra filés, para o almoço dele e do anfitrião com a família.

Juquinha Graveto com Domingo Salamargo e Pedro Cocherra chegaram do Vau da Galinha, fazenda vizinha, trazendo uma pequena manada. Era aproximadamente 15 (quinze) rezes.

Naquele gado veio um boi rajado de preto com vermelho, tinha as ventas pretas, olhos, chifres e unhas vermelhas. Era do tipo que acostuma, mas não amansa. Era da idade de uns cinco anos, culhudo, gordo, pesado e arisco. Chegou ali por próprio descuido: foi enganado quando levado entre as demais reses. Não estranhou o caminho porque era nas paragens onde foi criado e vivia. Seu próprio logradouro! Passou pela porteira sem notar, pois se encontrava entre as reses e foi engambelado.

Ele não gostava de porteira, era quase selvagem e não tolerava ficar fechado, gostava de liberdade. Geralmente ao chegar numa porteira, refugava e pronto, dava a testa e não entrava nem por “reza braba.” Sua mãe foi vaca de pouco leite, cujo, mal deu para criá-lo por isso não foi ordenhada e ele teve pouco contato com gente, foi criado na largueza, ficou mal acostumado agindo conforme a sua vontade, conforme os próprios instintos e sentindo-se dono do pedaço. Fazia o que bem entendia. De cupim avantajado e levantado, chifres crescidos e culhões descidos, sentia-se, senhor da situação. Turrava atrevido arrancava pedaço de chão com os chifres sapateando na grama. Escorraçava touros reprodutores e rufiava as vacas.

Pedro Cocherra avisou logo, dizendo: Só pu diacho minino, prá mexê qu’esse boi tem qui tê cuidado. Prá passá ele na porteira tem qui sê igual passou aqui: na maciota, faceirando no meio das vacas. Pois se o bicho cismá, num entra nem qui a vaca tussa e nem deixa o resto do gado entrá. É maludo qui só ele. Quando infeza, dá a cabeça pur resposta e prono, ninguém chega perto.

João de Saquim respodeu: Qual o quê. Cum tanto home igual tem aqui! Quem é ele? Nóis faz ele virá bizerrim de novo. E bizerrim injeitado, ainda mamando na mamadeira quando a gente dá. Se fô priciso nóis leva ele no ombro e põe La dentro. Ora se num leva!

Bem, para prender o gado que ia chegando e tinha que ser preso, só tinha um pastinho no fundo dos currais. Era um piquete bem fechado, portanto, seguro. Era pequeno para pasto, mas grande prá ser curral. Era cercado prá bezerro, com oito fios de arame farpado e com forragem de grama.

A entrada da porteira, ao logo dos anos, com o entra e sai de animais, já havia rebaixado o chão e com as chuvas acumulado certa porção de água, tornando-se uma grande poça de lama.

Quando Domingo Salamargo e os outros foram prender ali, o gado que trouxeram, o boi rajado foi na frente para confirmar as predições de Pedro Cocherra. Parou antes da porteira, cheirou a água, fungou e balançou a cabeça, recuou alguns passos e não entrou. A peonagem estimulou o gado gritando e reses escapavam daqui e dali, o boi rajado obstruindo a passagem deu a cabeça e não deixava nada passar.

Jarbas, vaqueiro consagrado desde a infância e dotado de vaidade devido a pouca idade, querendo mostrar a habilidade com o aguilhão, que trouxe do berço e aperfeiçoou na labuta, em seus poucos anos de vida, viu ali mais uma oportunidade de exercitar um de seus instrumentos preferidos na vaquejada, o aguilhão.

Tomou em suas mãos uma vara que se encontrava como tantas outras encostadas na cerca do curral. Ele nem sabia a quem pertencia, mas aquela, era a ideal pelo tamanho, pela grossura e pela ponta do ferrão em sua extremidade. Ele era exímio conhecedor daquele instrumento!

Tratava-se de uma vara de pereiro tatu, com um único gomo, bem curada e cuidadosamente sapecada, portanto, flexível, amarelinha. com algumas manchas escuras devido as partes mais assadas. Era reta, igual uma régua; era cheia, dava pra encher a mão na medida exata, no limite de não prejudicar, mas ajudar no seu manuseio. Media exatamente dois metros, o ideal para um vaqueiro trabalhar um marruás. Se bem manejada, resistia o peso de qualquer boi. Era tudo que ele precisava naquele momento!

Ele a pegou com carinho, retirou a bainha do ferrão e o testou, num gesto automático: passando por várias vezes o polegar de leve sobre sua ponta. Era um cone/espeto de ferro maciço, medindo, a parte exposta, uns cinco centímetros, virgem, afiadinho.

Naquele momento, chovia fino, quase um sereno. Umas 10h00 (dez horas) aproximadamente. A fumaça do moqueado vinha aguçando a fome da peonagem, mas com a expectativa do duelo entre o Rajado e Jarbas, então gerada, o almoço ficava num segundo plano. O espetáculo para aquela gente, era prioridade até em relação ao “rango” e gritavam num coro de vozes: Vai Jarbas, pega esse curraleiro no ferrão, mostra pra ele “cum quantas pimentas tempera um macaco!” Acaba logo cum isso que estamos cum fome, rapaz!

Jarbas, calado, tranquilamente caminhava em direção ao boi que batia a pata dianteira na grama molhada, turrava e com os chifres arrancava tampos de grama, chamando-o.

Major Jeferson dizia: nunca vi um boi tão acuado. Ele é perigoso!

O vaqueiro, calmo com gestos mansos, como se a situação fizesse parte de seu dia-a-dia, caminhava, passando a fralda da camisa xadrez, ao longo da vara enxugando-a. Caminhou devagar indiferente ao alarde que provocava indo ao encontro da fera e foi!

Jarbas ia confiante, com a elegância e o sorriso de quem vai receber um troféu. Fizeram silêncio. Todos sabiam do perigo que o vaqueiro se expunha na refrega. O boi era pesado, estava acuado, enfezado. O opositor, quase um menino; a vara molhada, escorregadia, não oferecendo firmeza. Mas o vaqueiro foi topar com o animal que veio fungando de cabeça baixa, ele já havia armado o golpe quando o boi arrancou e agora tudo aconteceria em frações de segundo, não havia volta nem tempo para corrigir qualquer falha. Todos pensavam que o peão visara às ventas do bruto como era o costume e quando viram este baixar a cabeça e vir com as ventas soprando a grama, previram o erro no golpe e já vislumbraram a tragédia. E gritaram: CUIDADOOO!!! Mas Jarbas, apesar da pouca idade, já era amadurecido no exercício do aguilhão! Consciente e com a tranqüilidade de quem sabe o que faz, num golpe perfeito, certeiro e eficaz, cravou-lhe a maça do peito, entre as duas patas dianteiras. O boi instintivamente, ainda, tendo suas carnes rasgadas pelo ferrão continuou vindo pra cima do adversário que, impelido por um sexto sentido baixou as mãos levando o “pé” da vara ao chão. Na terra molhada, a vara fincou uns quinze centímetros e arqueou como um bodoque, todavia resistindo o peso do animal. A pressão da vara jogou o boi para traz e este recuou, também para se livrar do estrepe. A esta altura nem só o vaqueiro sentia o sabor da vitória, mas todos os presentes que o aplaudiram. Mais uma vez o vaqueiro preparou novo ataque, mas Rajado, vencido, humilhado, cabisbaixo já atravessava a possa de lama, transpunha a porteira e adentrava no piquete.