NÃO ADIANTA CHORAR SOBRE O LEITE DERRAMADO

Cada um que seja forte para carregar a sua cruz, né não cumade? Espere, escute que ainda não acabei de falar! A pessoa nem tem direito de acordar cansada, pode?

Ontem, antes de dormir, engomei foi uma trouxa de roupa que não tinha tamanho! Só de lençol e toalha pra mais de quarenta! Eu sei, eu sei que é a minha obrigação, quem mandou eu num querer ser gente, largar a escola, me avechar e casar ainda cheirando a leite?

Mulé tem calma que tu fala, amiga é pressas coisas, escutar as outras! O Benedito do ferro esquentava de vez, eu tinha que abrir a porta pro vento assoprar as brasas e o medo? Tudo tão escuro, eu sozinha, aquele vei roncando e nenhum som na rádia! Inté troquei as piulas, mas o bichinho só roncava, igual o vei. Aproveitei, comecei a cantar uns benditos, a rezar meu rusaro e quando acabei de rezar a última armaria, num esqueci o ferro em cima da ceroula nova do cumpade, a peça que a madame mais pediu preu ter cuidado! E agora, mulé, quando ela chegar, vou dizer o quê? Já sei, cumade, nao precisa dizer, você só sabe dizer sempre a mesma coisa!

Eu cheia de aperreio nem consegui pregar os zoio, tou aqui toda escangotar, o braço morto do peso do ferro Benedito, a cabeça grossinha de num saber o que vou dizer a madame e esse vei sem currutela peidava tanto que tive de abrir a janela do quarto para correr vento e levar o vento podre dele pro inferno a dentro! Me levantei, fervi água, fiz um chá de boldo, pus fumo no cachimbo, acordei ele, depois que bebeu, foi pior! Era arroto e peido, pense, numa cantoria que só escutando pra ter certeza! Tinha hora que eu pensava que estava na seresta de Zé Palhano, ouvindo Bartô e comendo buchada! Diz ele que foi da piranha escaldada que ele comeu na maré! É nisso que dá, inventa de comer fora de casa, não sabe nem se a piranha era bem preparada pra ficar no estado desse.

Não escutou nem eu acabar de falar, virou de lado e rebolou um peito violento que acabei engolindo todinho, estava de boca aberta falando com ele, bati foi a porta do quarto e saí de lá cega de ódio! Armei uma rede aqui na cozinha, toquei fogo no cachimbo e passei o resto da noite me balançando! Tou aqui com a perna dura de tanto movimento, sem poder andar direito e o corpo parece que passei a noite inteira num forró! Tou toda doída e mais uma trouxa de roupa para lavar. Pera mulé, dou já seu tiqui de pasta, deixe só eu terminar porque o mequetrefe do meu marido saiu bem cedo e me trouxe esse presente, veja, quer comer carne de criação, pode uma danação dessa? Diz ele que tirou esse bode velho numa rifa, quer que eu, uma veia dessa cansada, toda estrupiada, trate todo o fato do bode, faça uma buchada, uma papelada, uma fuçura e salgue a carne porque mais tarde vai vir um bando de macho pra cá encher o cu de cana e jogar pacará!

Mas menina, eu olhei assim, lembrei de minhas irmãs em casa, procurando a luz da lua pra fazer os dever da escola, quando não tinha, acendiam a lamparina e na luz da lamparina, enchia o nariz de tirna e a cabeça de conhecimento. Hoje em dia são todas formadas em professora, e eu tendo que aturar uma vida dessa!

Eu disse a ele que partisse daqui e fosse fazer baderna na casa do inimigo porque hoje, muito cedo, eu ia lá pra sua casa, depois da novena, assistir o último capítulo da novela... Nossa, que catinga de queimado é esse, cumade? Valha me deu, é o leite que coloquei no fogo, meu Deus, já virou foi doce!

Mulé, a senhora cumade, chega na casa dos outros uma hora dessa, fica puxando conversa e nem serve pra dizer que o leite derramou! Nam, nunca pensei... tome logo esse tiqui de pasta no dedo e parta!