É muito angu pra pouco milho

Quando a gente sapeca uma banda de tijolo daqui pra lá, pra afundar os chifres e escorrer o sangue, logo gritam: "Essa veia tá doida! Só amarrando na corda encharcada no molho de pimenta!" Se atreva filho de uma égua manca, diga alguma coisa pra ver se eu não costuro seu nome na boca de um sapo morto de fome e rebolo lá dentro do cemitério em noite de lua cheia.

Tá pensando o que, cambada de perna de pau! Já sei, naquele dito que diz que mulher feia e jumento, só quem vai atrás é o dono, né mesmo, mas não é assim desse jeito não! Respeite minhas rugas, meus cabelos brancos. Sou uma mulher pra mais de meio século de existência, hipertensa, entupida de reumatismo por toda parte do corpo, sofrida dos nervos, infartada já por três vezes pra ainda levar desaforo pra casa. Vá juntar lavagem de porto, lavar roupa no cacete ou depenar galinha na água fervida.

Sou do tempo que educação se aprendia em casa, com os pais. Dizer bom dia, boa tarde, boa noite, com licença, desculpa, por favor, obrigado, jogar o lixo no lugar dele, enxugar o mijo, por a rede na cerca para secar, escovar os dentes na casca do juá com a escova feita da bucha do coco. Fui aprender as primeiras letras na escola da mestra D. Sabina, debaixo do algodoeiro, no quintal da casa dela, onde aprendi a soletrar o bê-aba por medo da palmatória, declamando os versos do Casimiro de Abreu e do Castro Alves. E como era bom, naquele tempo, porque a vida passava, enquanto a gente ficava de boca aberta, engolindo vento, contando as moscas e olhando o céu se colorir com os papagaios feitos de papel, palito da palhas do coqueiro, grude e linha nylon, pelas mãos dos meninos taludos. Agora me veia a lembrança da mestra de olhos claros, sorriso sisudo e cheirinho de talco e o coração maior que o universo. A gente tinha que chegar cedo, varrer o terreiro, competir com as galinhas ciscadeiras, arrastar a mesa e os bancos, enquanto a mestra tirava do forno uma fornalha de pão de queijo feito por ela mesma, mas só comia quem soubesse cantar a lição por inteiro. Os que não sabiam, coitados, viam a doçura dos olhos se transformar em zangão de abelha. Era bolo nas mãos, nenhum pãozinho na boca e ainda tinha de juntar todos os ovos das galinhas espalhados pelo terreiro.

Sai daí, espevitado, vá cantar de galo em outra freguesia que meu galo de campina eu já tenho desde que ainda tinha pele de maracujá, bem novinha, quando inventei de brincar de cai no poço e por um deslize pisei em terra fofa e quando pensei que não estava afundando, ia me atolando, comecei a gritar e o barro me querendo, fiquei desesperada e o barro não desgrudava de mim e quando pensei que não, já estava toda atolada, atoladinha, atoladinha. Passei a brincar de esconde-esconde, fiquei enjoada, fui brincar de gangorra e de tanto subir pra cima e descer pra baixo, uma coisa ruim, uma coisa estranha, adoeci de bucho inchado. Meu pai pensava que eu tinha comido melancia demais porque tava vomitando, minha mãe desconfiava da banana porque tava de barriga crescida e dura, já as vizinhas já diziam que quem fazia aquilo era macaxeira estragada. Pronto, foi aquele rebuliço, às pressas, já estava casada e sacudida de lá pra cá, pro povo não desconfiar que tive menino antes do tempo, aí eu chego aqui perguntando se o senhor tem pavio pra tocar fogo na minha lamparina e você vem pra mim cheio de cabimento! Não gaste comigo o seu querosene que pra mim ele não serve, vá tocar fogo lá nas suas quengas, em mim não. Confesso que já faz muito tempo que virei um poço de água corrida, desde que meu chafariz enferrujou que o fechei para que nenhum fósforo aceso queimasse perto de mim. Marche logo, antes que eu me arrependa e lhe ponha um quebranto, ou jogue uma praga.

Bom mesmo era os outros tempos. Noutros tempo nem existia supermercado, existia mesmo era bodega, a gente ia lá, comprava duas folhas de papel de carta, escrevia com letras desenhadas, dobrava cuidadosamente, comprava envelope, punha a carta dentro, comprava um dedal de perfume ou pegada um rosa, tirava as pétalas e punha junto da folha da carta para que chegasse perfumada ao destino. O tempo da espera era grande, mas era bom, a gente tinha tempo de querer ser uma borboleta, ou mesmo um beija-flor, só para saber de como a pessoas recebia as nossa notícias. Ruim era quando a carta chegava abarrotada de agouro de má notícia. A gente sabia logo porque não tinha cheiro de alegria e as letras eram chorosas nas linhas.

Pensa que não me lembro, seu mequetrefe, o senhor é aquele vendedor, não é, que queria fazer comigo um negocinho nas colchas. Agora me veio a lembrança. Eu disse que não e o senhor bem que insistiu. Dizia que fazia um negocinho nas colchas e eu nem ia sentir, ia chorar de tanto rir ou rir de tanto chorar. Mantive minha palavra, o senhor dizia que o seu negócio nas colchas era bom por demais, que mulher nenhuma tinha reclamado, que as colchas eram macias, seu negocinho suave, eu ia me deitar confortável e sem pressão, o senhor poderia fazer do jeito que eu quisesse, sem pressa, sem vexame, sem agonia, da forma que não doesse pra mim, e eu já impaciente, o senhor insistindo, querendo meter as colchas, e eu com sede, o senhor pedindo água, eu fui a cozinha pegar, quando voltei o senhor já estava com tudo pra fora, eu desesperada, o senhor pedindo para eu pegar, para sentir como era macia, eu já pegada com nossa senhora para não cair em tentação, porque a carne é fraca, eu não podendo fazer nenhum negócio porque tava de promessa, super apertada, o senhor mostrando de várias maneiras, já me dando uma mijadeira, o senhor insistindo, pegando na minha mão, dizendo que estava nas minhas mãos, pedindo para eu apertar com segurança, eu já doida, até que meu relógio despertou e eu disse ao senhor que não queria fazer negócio nenhum nem nas colchas, nem nos lençóis, nem nas toalhas, nem na batedeira de ovos, que o senhor fosse vender suas coisinhas em outra freguesia. Era o senhor mesmo, não conheci antes porque tirou o bigode, fez a barba, cortou o cabelo, mas cresceu a barriga, nossa, que barriga enorme, não sei como o senhor enxerga o pé para amarrar o cadarço. A cara de labiador é a mesma, a capanga do dinheiro também.

Mais vá logo, ande homem de Deus, já que não tem pavio, me mostrei aí o seu pepino, deixe eu ver se é bom mesmo, se tá verdinho ou se já amadureceu demais, porque pepino maduro demais não serve, fica murcho, mole e sem gosto. Nossa, é um pepinão, de fazer os olhos chorarem e a boca encher de gosto. Aí, como é, é no peso ou na unidade? Como? De graça? Olhe aqui seu mané, quando a esmola é grande, o santo até que se anima, mas fica desconfiado porque já sabe que por detrás de tudo vem o pedido de um milagres impossível de se realizar, dá até lágrimas nos olhos só de imaginar, e ande logo que hoje nem posso sorrir porque inventei de comer rapadura, ontem, quando abocanhei o primeiro pedaço, pois não é que o danado do dente me pegou na covardia, não veio mais, ficou pregado no melado dela. O pior é que na falta dele, nem posso provar da carninha maciça que tanto me deu vontade de levar, pra casa, hoje! O jeito mesmo é voltar e me contentar com o jerimum empapado que já cozinho há anos...

Marcus Vinicius