NA DÚVIDA, PRÓ-RÉU

NA DÚVIDA PRO-REU

Rochinha chegou ao sertão, cansado da vida tumultuada da cidade. Ali sim, naquele seu pedacinho de chão, era o prefeito, o deputado, o rei, era tudo... Abriu a porta de sua casinha, encheu a moringa de água do Corguinho, deu ração a gata que lhe enrolava o rabo na altura da botina, jogou milho às galinhas e foi preparar o almoço, pois a fome já lhe reclamava ao estômago.

Como a geladeira é à gás e tem somente um bujão e ainda porque gosta mais assim, foi acender o fogão de lenha que é feito de latão e tem vantagem de ser móvel e fica logo à porta perto da área coberta embaixo de uma mangueira nova e folhuda. A sua melhor companheira nestes momentos é a solidão, mesmo porque ela de nada reclama, não exige, não cobra, não critica e por cima é deliciosamente s i l e n c i o s a...

Primeiro foi acender o fogo. Sim acender fogo com rapidez não é para qualquer um. Tem que ter arte. Primeiro retira-se as cinzas dos outros dias, joga fora. Não, não se joga as cinzas fora vai para o pé de pimenta ou outra planta próxima. Depois pegou uns pedaços de embalagens de ovos colhidas nas portas dos supermercados que estavam guardados num saco furado, untou as embalagens com óleo queimado misturado com um pouquinho de gasolina enfiando-as no fogão. Saiu embaixo dos pés de laranja colhendo gravetos bem sequinhos que foram colocados em cima do material com gasolina e óleo e por último umas lascas de sucupira estralando de seca retiradas de cercas velhas de arame farpado. Pronto... jogou o palito de fósforo “Fiat lux” e o fogo nasceu soberano.

Mas para que tanta ciência para acender um simples fogo? Não era mais prático retirar o bujão de gás da geladeira, cozinhar seu almoço e depois retornar o bujão?

- Não meu amigo, com certeza responderia Rochinha: Para que pressa! No sertão não há pressa, aqui tudo é na calma, na catilogência, na cadência e fique sabendo que a comida no fogão caipira é muito mas gostosa, muito mais...E além do mais, não tem ninguém agoniado aqui pra comer, não tem ninguém esperando esta comida, somente eu e eu agüento a fome, mas vou comer do jeito que quero...

Pois bem, Rochinha foi no varal pegou um taco de carne seca do sertão. Sim de vaca do sertão, detesta carne de gado de gente civilizada que é engordado na ração e a troca de medicamentos, anabolizantes , energéticos, mas são como frango de granja – “boa de aparência e péssima de gosto”. Aprecia a carne do gado sertanejo que é criado nas campinas, comendo capim agreste, palha do coco tucum e ramas de malícia da mata. Como ia dizendo pegou a carne, molhou um pouquinho e deslizou a faca pexeira , amoladíssima tirando fiapos bem fininhos para o cortado- de- arroz.Quebrou seis dentes de alho no almofariz de ferro, misturou o sal banco e jogou na panela com um pouco de gordura de porco, (também do sertão).

Trinta minutos depois pegou sua cuia de banda de cabaça, colocou sua comida caprichada e cheirosa na cuia de estimação, mas não sem antes quebrar três pimentas malaguetas do pé que cresceu na porta da casa. Tinha uma mania, só iniciava a comer se o copo de água estivesse sobre a mesa, o copo de água e a raspadura bem verdade. Colocou a água no copo, melhor dizendo, no litro. Seu copo era um litro de óleo de soja que retirara com a faca o tampão de cima, como dizia era o copão do rei Salomão.

O copão cheio de água, a raspadura encostada e a comida cheirando de boa, deu primeira garfada, mas parou de repente, faltava algo. O quê? – Faltava botar o gato pra fora de casa que a esta altura já miava de barriga cheia embaixo da mesa e fechar a porta para se ver livre do olhar melancólico da cachorra Xana que com a cabeça apoiada nas mãos juntas parecia chorar por um bocado.Bateu o chapéu com força na mesa , a gata saiu pulando, saltou a cachorra , cerrou a porta e começou a saborear sua refeição tão caprichosamente arquitetada.

Tirou o chapéu, colocou num prego na parede e começou a comer de pé. No meio da refeição sentiu as pernas bambearem, estranhou! Mas conjecturou,: Ah sei, entendo, isso é a fortaleza da carne do sertão, que não engorda, mas dá sustança, é melhor me sentar.

Comeu a comida da panela pelo meio. Disse: Vou guardar o restante para a noite. À noite tomo umas thubadas de Velho Barreiro, ligo o rádio e quando for deitar como o restante e não preciso fazer janta. É , é isso aí...

Depois da refeição Rochinha, comeu um bom taco de raspadura e bebeu o litrão de água da moringa que suava de fria. Foi se sentar à porta na velha cadeira de cordão quebrados , mas que agasalhava ainda muito bem suas costas cansadas.

Olhava Dalí seus animais que comiam ração no coxo de pau-darco , logo à frente e recontava as galinhas índias para ver se faltava alguma vítima da raposa de dois pés.

De repente saiu de sua atonia. Escutou o farfalhar das asas. Eram os joãos ... os joãos congos estavam a derrubar suas laranjas logo ali do lado. Pegou o estilingue, catou algumas pedras ali mesmo na porta da casa e saiu em perseguição dos pássaros atentadíssimos. Escorraçou-os , foram embora ilesos, o bicho é o pássaro mais sabido do sertão, ninguém os pega com estilingues ou com rifles vinte e dois, se escondem atrás dos gravetos, ninguém os vê, e quando o caçador está embaixo das fruteiras procurando enxergá-los já estão a uns duzentos metros de distância na copa de outra árvore farfalhando as asas negras e amarelas e soltando um trinido que mais parece uma gargalhada de galhofa.

Rochinha, voltou para sua casa rapidamente, tropeçando nalguns tocos de malva, quase caindo, pois lembrara-se que deixou a panela destampada em cima da mesa e ainda por cima, na pressa deixou a porta aberta. Entrou rápido, butucou os dois zoiãos na panela e viu o fundo limpo, limpo igual as bandejas das Taipas, nem uma faúla de carne seca, nem um caroço de arroz, comeram tudo, não deixaram nada, adeus minha janta gostosa-pensou Rochinha, com um nó na garganta de tanta raiva.

Foi a gata, tenho certeza que foi! Bicha sem consideração, eu já tinha enchido a barriga dela com a ração do cachorro, ETA bicha sem confiança! Mal agradecida!!! Excomungada dos demônios, etc. etc...e tal...Bradava Rochinha inconformado. Meu avô sempre falava: Você cria uma gata, lhe deixa sempre de barriga cheia e na primeira oportunidade ela lhe como o canário de estimação, é uma praga, não gosto de gato, cachorro não, você tem um cachorro, ele pode ser valente, mas se você trás um gatinho pra casa e lhe apresenta ele não toca no gato, pode perseguir os gatos da rua mas aquele que você lhe apresentou e que mora na casa, não, até dormem juntos, cachorro é amigo, mas gato, tou fora...É isso mesmo, resmungou Rochinha, é isso mesmo, repetia.. Agora é que estou me lembrando, certa ocasião minha mulher temperou doze bifes, deu dois presta mesma gata, foi tomar banho no riacho e quando veio para fritar os bifes está mesma malandra tinha devorado tudo. E eu ainda estava confiando nesta excomungada.

Foi ao quarto, pegou a espingarda bate bucha, carregada com dois cartuchos de 44, resolvido a acabar com a pichana.

Rochinha dizia-se um homem de sangue quente, nas rodadas contava suas valentias na Bahia, alegava ser parente de Horácio de Matos, famoso cangaceiro de tempos idos, mas somente para os outros não se meterem com ele e a Bahia era longe demais , e dessa maneira ninguém ia duvidar de suas proezas, mas no fundo era um coração de manteiga derretida, nunca revidou uma ofensa, engrossava o pescoço e falava rosado, mas na ora H, dava uma desculpa”deixa pra lá, Deus toma conta”, não vou reagir, senão quebro este sujeito todinho, e ia para a casa sempre são e salvo.

A gata estava embaixo da mesa num sono profundo. Olhou para ela procurando algum vestígio de que houvesse comido o seu manjar. Reparou bem na sua boca se tinha sinal do amarelo do açafrão, olhou minuciosamente e não viu sinal de açafrão. Olhou se a barriga estava avantajada, não, não estava. Baixou o cano da espingarda molemente e ficou pensando,: Quase mato uma inocente, uma coitada, que crime imperdoável eu ia cometendo, a coitada não pode se defender, não sabe falar , e um ignorante igual a mim, quer decidir tudo na brutalidade, sem dar o direito ao contraditório e a ampla defesa!!!- Essa gatinha, essa mesmo, antes dela rato fazia a festa nesta casa, eu me lembro, rato furava os sacos de bolachas Mabel, os pacotes de açúcar, até me fizeram queimar um fogão quando botei fogo nele para tirar uma ninhada de ratos que se esconderam. Depois que este precioso animal chegou aqui, adeus rato, nem um pra fazer um chá, nada, nada daqueles nojentos, e é assim que quero pagar o favor que me fez e faz, ò o bicho homem é ingrato mesmo.

Guardou a espingarda no quarto, e foi pra porta meditar. Queria achar o ladrão, viu a cachorra deitada aos seus pés, olhou ela com desconfiança. Essa é uma finíssima ladra, deve ter sido ela que comeu minha comida, só pode ser, olha a cara sem-vergonha dela, mora aqui na fazenda, não faz nada, não acompanha ninguém, não late, as raposas pegam as galinhas e ela fica só dormindo, uma imprestável , ladra sorrateira...Devia matá-la, não, não sou criminoso, vou levá-la amarrada e soltar em Campos Belos e ela nunca mais vai achar a estrada de volta. É isso que ela merece, ela vai me pagar, ora se vai...

Estava perdido nestes pensamentos de vingança contra a cachorra, quando chegou seu vaqueiro, então, Rochinha contou a história do furto e levando o empregado até a mesa onde se encontrava a panela vazia perguntou: Você o que acha? Foi a cachorro ou a gata?- Pelo visto não foi a cachorra, pois a boca da panela é estreita, o focinho da cachorra não cabe na panela e se ela tentasse teria derrubado a panela no chão, e quem comeu aqui parece ter comido de canudo, não derramou uma gota do caldo, sugou tudo com muito jeito.

E agora?- Nem a gata nem a cachorra!!! E eu culpando a coitadinha que não sabe se defender, uma cachorra tão boazinha que é só escutar o barulho do meu carro, corre ao meu encontro para me lamber e acariciar, batendo o rabo com todo a alegria do mundo. Meu Deus como o homem é perverso, quer ser superior a tudo e não passa de um convencido bobão.

Passou a mão na cachorra acariciando-a, como se pedisse desculpas pelos mal pensamentos que tivera minutos atrás.

A raiva já tinha passado e reparou que seu cachorro pit-bull de estimação continuava amarrado na coluna da área da casa. Este tinha um álibe perfeito, não roubara nada, estava bem amarrado na hora do crime. Chegou perto do cachorro, acariciou sua cabeça, soltou-lhe a coleira dizendo, vá dar uma volta amigo, distraia-se um pouco, você é valente mas de confiança, você tem pedigree.

Rochinha entrou na casa para tomar um café e fumar um cigarro de palha e quase caiu para trás quando viu seu pit-bull, com uma manta de carne-seca na boca que apanhara no varal, ali logo no quintal da casa.Não reagiu, filosofou resignado : Bobagem, uma porçãozinha de arroz com carne não vai me fazer falta, a noite cozinho dois ovos da amarelinha, tomo duas pingas e vou dormir tranqüilo, completando “ Os bichos não roubam, não entendem do código penal, não foram sequer a escola, são inocentes, ELES APENAS MATAM SUA FOME, UMA FORMA ACERTADA DE PRESERVAÇÃO, e chamou os dois cachorros e foram pro rio pescar lambari....

Laerte rocha. 14.07.2015