Misteriosa
Numa grama verde e cheia de entulhos no meu quintal, todos os dias, Misteriosa fazia algazarras. Tinha um arrulhar triste, porém, sonoro. Seus olhos avermelhados e arregalados unidos ao peito cheio, arrulhava como quem quisesse conversar comigo. Era mês de setembro e desde outros meses, Misteriosa já me fazia suas visitas constantes. Sem entender o porquê da assiduidade de Misteriosa, os dias foram passando rápido, e ela foi crescendo. Seu peito se enchendo cada vez mais, seu arrulhar ainda mais nítido se misturava ao som das dezenas de maritacas barulhentas que ali bagunçavam. Numa árvore ao lado, moravam alguns tucanos com penas de cores fortes e bicos suntuosos.
Na primavera, as abelhas zumbiam feito loucas, prontas a produzirem mel, beijavam as flores e, provavelmente, de sentinela, preparadas para aferroar quem as cruzasse o caminho.
Misteriosa, sem se importar com os gorjeares numerosos, onde pardais se atracavam, rolinhas coreografavam danças sensuais, alimentava-se barulhenta, todos os dias, na grama verde. Suas penas amarronzadas e de pontas mais brancas iam cada dia perdendo o volume. Parecia Misteriosa se despedir da vida! Para meu espanto, quando no final do mês de setembro, eis que ela me aparece acompanhada de Amendoim e Ariel, de cores diferentes. Mais pareciam estarem atrelados às finas canelas de Misteriosa.
Suas unhas, pendidas para dentro, mal conseguiam arrancar as sementes da branqueara e espalhá-las.
Certo dia, incomodado com a presença de Misteriosa e movido por uma curiosidade que me fugia o controle, resolvi analisar as atitudes da princesa. Cata pra cá, cata pra lá, come daqui e come de lá. Misteriosa parecia desvairada de fome. Amendoim e Ariel a acompanhava, meio atordoados e desajeitados, naquela labuta de catar sementes. Parei. Fixei os olhos nos dois cisquinhos de Misteriosa. Achei alegria em meus olhos ao me deparar com a pequenez e vontade daqueles minúsculos. Aproximei silencioso, e Misteriosa, ressabiada, arrulhou na minha direção como quem defendesse as crias. Achei melhor não afrontar o espaço de seus dois pequenos.
Ela arrulhava tanto, mas tanto, que levantava e abaixava a cabeça, abria e batia as asas, pulava, faltava pouco arrulhar na maior nota que pudesse alcançar, apenas para algo me dizer. Me senti incomodado com o alvoroço de Misteriosa.
A tarde caía. O sol já se escondia naquele fim de setembro. Os cantantes, misturados se recolhiam em seus ninhos, e Misteriosa, permanecia ali, de peito cheio e arrulho toante. Abaixei-me silenciosamente, analisei nas canelinhas finas de Misteriosa que já expulsava os dizeres quase que invisíveis, cobertos pelo sangue, devido a idade já avançada que carregava. Aquela era a última vez que ela viria para me transmitir o que ela queria.
Minuciosamente, se aproximou, encheu o peito, abanou as asas cansadas e arrulhou na minha direção, ergueu uma de suas canelas me mostrando uma pequena plaquinha suja de sangue com dizeres em letras manuscritas. Repentinamente, sem que eu me desse conta da tragédia, o vento assoprou a plaquinha no meio do mato seco, que se perdeu entre os muitos entulhos e galhos secos deixados pela longa estiagem dos tempos passados. Frustrado, procurei a plaquinha apressado, revirei todo o entulho, remexi os gravetos, enquanto Misteriosa ganhava os céus. Se retirou esvoaçante, saltou alto juntamente com Amendoim e Ariel, ganhou os céus, fez algumas acrobacias junto à copa das árvores, e voou longe, até sumir dentro de um boqueirão. Ela voltaria mais tarde, pois, em outra grama e em outro território, Amendoim e Ariel já estavam a fazer visitas constantes a outro alguém, junto a novos gorjeantes, novos tucanos e novas abelhas barulhentas.
Voltei derrotado para casa, entrei pro meu quarto, fechei a porta e chorei. Enquanto as lágrimas desciam adormeci. Profundamente...! E, enquanto dormia, aquele sono que me tomara foi rendido por um vento frio. Recebia eu, a visita de Misteriosa, trazendo em seu bico a plaquinha suja de sangue com os dizeres: "o mistério continua e só você poderá procurá-lo". Misteriosa lutou até o fim, mergulhou cada cantinho daquele mato, apenas para encontrar a plaquinha e me deixar o aviso durante o meu sono.
Os dias iam se passando apressados, Amendoim e Ariel faziam visitas alheias, certos de que Misteriosa fora uma boa mãe, exemplar e incansável. Ao acordar, logo cedo na manhã de setembro, percebi que Misteriosa havia cumprido a sua missão e que Amendoim e Ariel haviam se separado, visitavam territórios distantes e longínquos.
Passado isto, nunca mais dormi, nunca mais sonhei, nunca mais pude sentir a presença de Misteriosa e minha procura continuava, sempre revirando gravetos. Amendoim e Ariel não voltaram ao meu jardim, nem sequer tive mais notícias deles nas minhas bandas.