O INFERNINHO NO CÉU

Em 1980, trabalhando numa obra da ICC em Imbituba, uma pequena cidade litorânea do Estado de Santa Catarina, eu era o Gerente técnico de minha empresa de instalações técnicas, sediada em Cubatão - SP.

Na montagem de uma nova unidade, sob o meu comando, haviam técnicos de bom nível e muitos peões de trechos, estes, homens humildes, alguns sem estudos, vindos de vários lugares - A maioria dos estados do Nordeste - quase todos contratados para trabalhos braçais. Era gente muito simples, alegres, unidas e solidárias, mas também cheias de vícios e trejeitos culturais, a maioria sem rumos definidos.

Era muito comum, após o expediente da fábrica, para relaxarem, eles se dirigirem aos bares próximos para beberem, comerem variados petiscos e conversarem alegremente sobre as coisas do dia-a-dia.

Nas sextas-feiras, quando recebiam o adiantamento de salário, além de freqüentarem os bares da cidade, eles buscavam prostíbulos a fim de aliviarem suas tensões carnais. Para mim, os fins de semana eram quase sempre estressantes. Era quase certo que na segunda-feira eu iria à delegacia soltar alguns de meus peões ou, não teria operários suficientes para tocar a obra.

Eram muitos os problemas gerados por eles, alguns se mostravam até muito calmos e educados no trato com as pessoas, mas, após algumas pingas, quando juntos, às vezes se tornavam violentos e arruaceiros.

Uma vez, numa fria madrugada de domingo, fui acordado e avisado que um soldador entrara em cana, desta vez havia sido o Piau - Um sujeito pequenino, natural do Piauí, alegre, engraçado, carismático e muito querido por seus companheiros de trabalho. À princípio eu estranhei, ele bebia um pouco, mas nunca havia se metido em confusões. Perguntei sobre o ocorrido, me contaram que ele, bêbado, sem nenhum motivo aparente, havia espancado uma prostituta dentro de um bordel lá no "Céu".

Cansado e sonado, mas acostumado a esse tipo de situação, disse-lhes que o deixassem “apagando o seu fogo” na prisão, que pela manhã iria lá para soltá-lo. Pra quê!!! Minutos depois começou a juntar "Bebuns" em frente à minha pequena casa alugada, ali gritavam palavras de ordem e ofensas à minha pessoa. Nessa hora, sem muito entender, pensei: "Lá se vai o meu contrato, vou perder essa obra. Peão é mesmo a imagem do cão!". Com raiva me levantei só de cueca, vesti um surrado roupão de banho por cima, calcei um chinelo velho e fui para a varanda. Nessas alturas, estavam ali; os amigos do Piau, todos os cachaceiros da cidade, vagabundos e mendigos. Quando me viram, começaram a bater palmas e cantar: “Solta o Piau! Solta o Piau ou então vai se dar mal!”

Naquele instante, pensei; "Tô fudido! Isso vai crescer nas minhas costas, caralho! Tenho que fazer alguma coisa". Sem mais pensar, do jeito que estava, peguei a minha pochete, coloquei na cintura e fui para a rua. À frente deles, pelo meio da rua, caminhamos a passos largos rumo à pequena delegacia. Meu D’us! foi uma passeata terrível, me senti o próprio "Antônio Conselheiro" comandando o seu exército de neuróticos vulgares. À medida que avançávamos pela rua principal, com os gritos, algumas pessoas acordaram, abriram portas e janelas para ver a passeata célere passar. No embalo, alguns insones saíram de suas casas e se integraram à manifestação.

Chegando à frente da delegacia, vimos que ela estava fechada, ali só havia um guarda de plantão e uma viatura velha na garagem.

A multidão desvairada começou a gritar: “Solta o Piau! Solta o Piau!”.

O soldado olhou pelo visor da porta de entrada e ficou apavorado com o que viu, imediatamente ligou para o delegado e comunicou-lhe o acontecimento.

O delegado, quando chegou nas proximidades e viu a camorra agitada, voltou rápido para casa e pediu reforços policiais à cidade mais próxima; Laguna.

Passaram-se uns quarenta minutos, o pessoal mais inflamado, começou a gritar e socar a porta de aço da delegacia. O policial apavorado, na de conter a revolta, colocou o cano da espingarda no orifício abaixo do visor da porta. A princípio a multidão recuou, mas voltou bem pior, mais confiante. Eu até pensei em sair dali de fininho, pois ninguém mais prestava atenção em mim, mas pensei: "E a minha moral com o pessoal da obra, como vai ficar? Não, vou lá!" Pedi licença ao pessoal e fui para frente da delegacia. De costas para a porta de entrada, levantei os meus braços como um Messias e pedi a todos que se acalmassem. Com as canelas de fora, comecei a discursar num tom baixo. A multidão, a fim de me escutar, aos poucos começou a se calar. Finalizando, disse-lhes que tudo seria resolvido satisfatoriamente. Ali, pude perceber que aproximadamente 80% dos manifestantes presentes, nunca haviam visto ou ouvido falar no tal do Piau, estavam ali somente para "jogar lenha na fogueira", zoar.

Quando eu já estava quase dominando a situação, escuto as sirenes das várias viaturas chegando à alta velocidade. A multidão, mesmo antes de avistá-las se dispersou, ficando somente eu em frente ao portão principal da delegacia.

Alguns peões, de braços cruzados, ficaram do outro lado da rua, queriam ver no que aquilo ia dar. A guarnição policial avançou rápida para a delegacia, tendo à sua frente o delegado. De braços bem levantados, eu ali aguardei sentindo às costas o cano da espingarda do guarda de plantão - Antes apavorado, agora cheio de moral - querendo mostrar serviço ao seu superior. O delegado, de cassetete em punho, estava pronto para me espancar, mas quando chegou mais perto, me reconheceu - Eu havia visitado aquele Distrito policial várias vezes para pagar fianças e soltar meus peões - Ele me perguntou o que eu fazia ali no meio daquela balbúrdia e naqueles trajes. Assustado, disse-lhe que: 'Sob pressão popular, de casa, do jeito que estava, fui levado para ali apenas para tentar soltar um trabalhador que havia se metido em encrenca, mas que não sabia como uma simples atitude minha havia atingido tais proporções.

O delegado, me segurando pelo braço, para mostrar "força" à guarnição presente, praticamente me puxou pelo roupão para dentro da pequena delegacia. Naquele instante, senti que ele me pegara de jeito; seria o seu "bode expiatório", justificativa para qualquer merda que acontecesse ali em função daquela manifestação.

Sentado à sua frente, com muita calma lhe expliquei os fatos. Ele chamou o guarda de plantão e pediu explicações sobre o ocorrido.

O guarda disse-lhe que recebeu um chamado de um bordel, lá no "Céu", aonde um sujeito bêbado havia dado uns tapas numa das putas; lá chegando, ele interpelou o meliante alcoolizado e o colocou na viatura, quando na delegacia o recolheu pro xilindró e só.

O delegado mandou o guarda trazer o detento à sua frente - O Piau, se era pequeno, naquele momento, estava menor ainda - Incrédulo, o delegado olhou para ele de alto a baixo e pediu-lhe os documentos. Largando um “Sim seu dotô”, querendo se explicar, Piau os entregou.

O comissário, querendo fazer valer a sua autoridade, meteu-lhe um dedo em riste na cara e mandou-o calar a boca.

Com o crachá do Piau na mão, o delegado me perguntou se ele era de fato meu funcionário, eu confirmei e acrescentei que ele era um ótimo trabalhador e um bom cidadão, não um meliante como havia dito o seu guarda. O delegado olhou para ele e ainda fez troça:

- Fico aqui imaginando como será o pior sujeito da sua turma...

Procurando ser simpático, eu quase implorei para que ele contornasse aquela situação, disse-lhe que pagaria a fiança e controlaria aquela manifestação.

O delegado perguntou ao guarda de plantão se ele havia feito algum BO, o guarda disse-lhe que ainda não havia nenhuma queixa registrada, se for o caso, o escrivão faria isso pela manhã.

Conversando, senti que o delegado aos poucos afrouxava, quem sabe poderia deixar-me sair dali com o Piau e, sem pagar a fiança.

Quando a situação estava sendo levada à um bom termo, veio uma péssima notícia; mais uma vez o pessoal estava, aos poucos, se aglomerando na frente da delegacia. Eles não haviam ido embora, estavam pelas esquinas observando o movimento, quando cheios de coragem, voltaram. Mesmo com a guarnição alinhada, em posição de ataque, eles começaram a gritar: “Piau! Piau! Solta o Piau”. Porra! Aquilo para mim foi o fim! O delegado, nervoso, foi ver o que estava acontecendo na rua. Quando voltou, balançando a cabeça, me chamou de lado e disse assim:

– Não vai dar pra soltar o teu funcionário agora, eu ficaria sem moral perante a essa guarnição de Laguna e dos moradores presentes.

Argumentei na forma de sugestão, induzindo-o à tomar uma decisão:

- Senhor delegado, enxergue a situação, esse pessoal não irá embora daqui enquanto o senhor não soltar esse trabalhador!

O delegado, mais apavorado que noiva virgem em lua de mel, perguntou-me:

- Então, diga-me, de que forma vamos tentar resolver esse problema?

Analisando bem os prós e os contras, eu quase impus a ele:

- O senhor avisa a multidão que vai soltar o peão e, em troca, vai me deixar preso, após a multidão ir embora dispense a guarnição, algum tempo depois eu sairei daqui sozinho, está bom assim?

O delegado olhando para mim, dando uma de comovido, me disse:

- Tens certeza que não vais ficar mal depois disso? Esse é um gesto muito nobre de sua parte, mas sei que dessa forma tudo se resolverá.

- Comissário, fazendo o que é certo, o tempo se encarregará de apagar o resto. É claro que tudo se resolverá sem problemas...

O delegado manda trazer o detento, agarra-o pelo braço com firmeza e se encaminha para a saída da delegacia. A multidão quando vê o Piau ao lado do comissário, começa a gritar: "Piau! Piau! Piau!"

O comissário, soltando o seu braço, o empurra para a multidão, à eles manda que desapareçam imediatamente dali.

Com o Piau sendo carregado em triunfo, o pessoal parte rindo, cantando e gargalhando de tudo.

O Piau, depois de algum tempo, já refeito do susto passado, explica ao pessoal que eu pedira para ficar preso em seu lugar, isso por causa do tumulto causado por eles.

Com a guarnição dispensada, o delegado falando sobre a nossa saída repentina de casa durante a madrugada, ria animadamente comigo, já estava até me oferecendo uma carona para casa, quando, escuto o guarda de plantão gritar: "Doutor, eles estão voltando, eles estão voltando!!!"

O delegado se dirige para a porta do distrito e vê a camorra chegando, agora liderada pelo atrevido Piau. Eles estavam gritando:

“Patrão! Patrão! Solta o meu Patrão! Ou eu daqui não saio não!"

Ele volta amedrontado e manda o guarda fechar a porta de aço, cabisbaixo se dirige à mim, coçando a cabeça me diz:

- Meu amigo, e agora, a guarnição já foi dispensada, vamos ter que resolver isso de alguma forma, mas você não poderá sair daqui agora.

Olhando ele e o seu soldado se armando, fiquei pensando num possível confronto armado com o meu pessoal. Preocupado com essa possibilidade, chamei-o de lado disse-lhe com franqueza:

- Senhor comissário, eu não estou gostando nada disso, só vejo uma saída pacífica para essa situação, é melhor o senhor fingir para eles que está me soltando e encerrar esse caso agora, é mais fácil!.

- Meu amigo, eu sou a autoridade deste distrito, não posso perder o controle dessa situação, vou mostrar à eles quem é que manda aqui.

- Comissário, o senhor me desculpe, mas acho que não vale a pena tentar resolver isso na força. Veja bem, está quase amanhecendo, se eles chamarem os repórteres aqui, tudo isso poderá ganhar uma outra dimensão e ficar muito pior para todos. Pense bem sobre isso...

O delegado, confuso, mas sabendo que sua moral já estava sob seu controle, pois só aquele policial ali sabia do ocorrido, me disse:

- Está bem!! Vamos lá pra fora, vamos acabar logo com isso. Vou te liberar de uma vez. Vê se finge sofrimento nessa tua cara sorridente e, mantenha essa gente bem calada, ok?.

- Ok comissário! Foi uma sábia decisão, muito obrigado, pode deixar comigo!! Não tenho palavras para agradecer-lhe pela sua paciência, inteligência e compreensão.

O delegado pediu ao guarda para pegar uma prancheta e um formulário e nos acompanhar. Chegando lá fora, ainda me segurando pelo braço, pediu calma e silêncio ao pessoal. Numa verdadeira encenação teatral, ele disse aos baderneiros:

- Eu quero saber, quem de vocês vai vir aqui assinar o termo de responsabilidade pela soltura deste senhor?

- Eu vô assiná Dotô!! – Gritou alguém no meio do pequeno grupo.

O silêncio foi quase total. Nessa oportunidade o delegado perguntou:

- Eu quem?! Venha aqui à minha frente quem falou!

O pessoal se afasta e abre-se uma ala, ali aparece alguém caminhando em nossa direção, de cabeça erguida, sendo muito aplaudido e cheio de moral: Ah! Era ele, o pequeno Piau, o pivô de toda essa quase tragédia.

O delegado olhou invocado para mim, naquela hora eu quis morrer de raiva ..., o Piau não...!! Qualquer um, menos ele... Pensei.

Ele, muito altivo se dirigiu ao delegado, com um bafo de espantar jaguatirica, apontando o dedo para mim, disse:

- Dotôzinho, eu qui sô o responsávi purele, bota isso ai nos papés!

O delegado, querendo muito que aquele pesadelo acabasse logo, sem uma outra saída, ainda segurando o meu braço, querendo mostrar a sua autoridade, berrou:

- Soldado!! Pegue os documentos desse indivíduo e anote os seus dados pessoais no formulário, depois o mande assinar abaixo!

Quando o delegado terminou de dar a ordem, o Piau falou alto:

- Dotô, num sô homi de istudo, num sei iscreve nem assiná meu nome!

Com a turma toda gargalhando do mico passado pela autoridade, e do jeito engraçado desse peão arretado, o delegado não teve outra saída, com cara de bundão, me entregou ao danado do peão.

Abraçado pelo sorridente Piau, saí dali num misto de herói e maluco, dependendo do ângulo que se possa enxergar esse caso.

Não teve jeito. As Rádios; Bares da Cidade e a Boca Maldita, no dia seguinte mandaram essa história hilária para o ar.

Um jornal de Laguna, num pequeno artigo, contou essa história quase na íntegra, claro; sem os pequenos detalhes combinados entre eu e o delegado. A nossa sorte foi que esse jornal não teve grande circulação em Imbituba.

Por causa da promessa velada que fiz à peãozada, de que nunca mais iria a uma delegacia soltar alguém, por qualquer que fosse o motivo, dali para frente ninguém mais decidiu zoar e se arriscar a ser preso, para o meu alívio nunca mais houve alterações desse tipo.

Mais tarde, fiquei sabendo de toda a história pela boca do Piau:

- Patrão, na otra semana fui num inferninho lá no Céu, o sinhô sabe bem onde é né...? Hehe!

- Sei Piau!! Na zona que tem lá no alto do morro, ao lado da fábrica. Continue, vai:

- Poizé, eu peguei e paguei uma mulé da gota e caímo no nheco-nheco, foi dinherão patrão, mas valeu...

- Piau me conta a verdade, foi nessa que tu meteste a mão ontem?

- Poizé, foi essa memô patrão. Eu gradeçu pru sinh....

- Porra!!! Pára Piau, não me enrola, quero saber de tudo agora, conta, eu mereço saber, porque você bateu nela, fala bicho do mato?

- Patrão, vô fala, foi eeela qui mi passo uma tal de “guinorréia”, num paguei paisso homi, fiquei numa gota só, fui lá e vingue; bati de tapa nela, mas foi só poco.

- Seu demônio!!! Hahaha!!! Veja se não se mete mais em encrencas. Se trate, cuidado que gonorréia passa para os outros, vá procurar a Dra. Leila, aquela médica bonitona lá da fábrica. Ainda hoje heim! Diga que fui eu que te mandei. Ah! Quanto aos remédios, deixa comigo, eu pagarei!

- Brigado patrãozinho, vô sim, cum sinhô tenho consideração, mas num conta isso pros pião daqui, elis num tem nossa catiguria...

Agora, pensando em tudo o que nos aconteceu naquela fatídica noite, ainda lembrando que nos mantivemos unidos e solidários até o fim, senti que ali nos comportamos, de fato, como uma grande família.

Muito mais orgulhoso de tê-los como amigos e companheiros de obra e, com a certeza de ter aprendido com eles uma grande lição de vida, daquele dia em diante passei a tratá-los de uma forma um pouco mais digna. Por muito tempo, enquanto sócio dessa empresa, mantive aquela boa equipe trabalhando em meus contratos.

Falando ainda daquela terrível noite; ao chegar em casa cansado daquela epopéia, confesso, deitei-me e fiquei rindo muito da esperteza natural dessa gente humilde. Eu praticamente passei aquela noite sem dormir.

ZIBER
Enviado por ZIBER em 11/07/2007
Reeditado em 18/07/2014
Código do texto: T560988
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