BÊNÇÃO

Marcos, homem religioso e de fé, sempre se preocupou com as condições de seus semelhantes. Evangélico praticante, marca presença em todos os cultos e atividades da sua congregação, dedica-se com perseverança para arrebatar almas para o Senhor. Ainda não alcançou a hierarquia de um pastor, mas já faz por merecer. Nunca abandonou um irmão ou deixou à sorte quem quer que fosse, está sempre pronto para acolher, aconselhar e confortar os desafortunados que o procuram na esperança de obter o bálsamo para as dores. Se não pode ajudar com dinheiro ao menos é prestativo com suas fervorosas bênçãos e orações. Vale aqui um registro, tanto sua agenda quanto o exemplar das Sagradas Escrituras estão sempre às suas mãos, esteja onde estiver. Havendo oportunidade, não se furta a fazer uma oração, para depois abençoar cada um dos presentes proclamando o nome do Pai.

Mas não só da atividade religiosa e espiritual vive esse homem de meia-idade, que trabalha com afinco para sustentar a família, mulher e três filhos. Ele tem mil atributos que o credenciam como um ser de valor, correto e devoto, todavia, é um pecador inveterado no quesito organização e por demais atabalhoado.

Comerciante que é tem por responsabilidade efetuar as entregas de seus produtos nas mais distantes localidades no veículo, uma perua Chevrolet Veraneio ano 1993, cuja cor predominante é a ferrugem. Vez por outra, ou vezes sim, vezes também sim, o seu possante o deixa na mão, mas nada que um empurrãozinho ou um arame possam resolver. O único dispositivo impecável do carro é a documentação, está inteiro, porém, vencido há anos. Já a habilitação, bem, o que seria isso? Incauto que é, já passou por situações constrangedoras, e por vezes comprometedoras, como a que aconteceu recentemente. Transportava uma mercadoria para o Porto de Santos, seguia pela Rodovia dos Imigrantes, quando na descida da Serra houve uma pane no carro e se vê obrigado a parar no acostamento. Nesse instante, uma viatura da Polícia Rodoviária com quatro militares para à frente, a uma distância de uns 30 metros. Enquanto um dos soldados dirige-se ao veículo, os demais permanecem encostados na viatura, é feita então a abordagem rotineira:

– Boa tarde, senhor. Os documentos, por favor.

Marcos responde à saudação com um sorriso nervoso e apresenta a nota fiscal das mercadorias. O Soldado verifica e indaga em seguida:

– Mostre-me também a documentação do veículo, cavalheiro. Marcos apresenta o papel com a data pra lá de vencida.

– Meu caro, o licenciamento está vencido. Quero o atual.

– Não tive tempo de atualizar.

– Por favor, mostre-me também a sua carteira de habilitação. – Não tenho não. – Situação difícil a sua, hein, amigo. Seremos obrigados a apreender a sua Veraneio. O que podemos fazer?

Com ênfase e semblante sério, Marcos responde:

– Se quiser posso dar uma bênção para cada um de vocês e resolvermos de vez esse mal-entendido.

O Soldado pede para que Marcos permaneça no local e segue com os papéis em direção aos companheiros. Os quatro conversam entre eles. O primeiro fica na viatura e em seu lugar vem o Cabo que aborda o homem:

– Senhor, sabe bem que sua situação está irregular. Como podemos amenizar tudo isso?

– Bem, como disse ao seu colega, posso dar uma bênção para cada um de vocês, sem problemas.

– Você sabe que a situação não está fácil para ninguém. Nesses tempos difíceis, uma benção sempre é bemvinda. Contudo, preciso falar com o meu Sargento como será dada essa bênção.

Marcos aguarda encostado no carro, enquanto os militares confabulam. Chega a vez de o Sargento interpelar:

– Senhor, sei que estamos tratando com um cidadão de respeito, uma pessoa de bem, assim como nós. Em momento algum duvidamos disso, mas sabe como é, todos temos os nossos pecados para pagar. O meu Tenente quer cautela no assunto, como também quer saber qual é o tamanho dessa bênção que vai nos conceder.

– Acredite, será do tamanho do merecimento de cada um.

– Então, aguarde aqui que terei uma conversa com eles.

Após uma rápida reunião entre os militares, Marcos é chamado e instruído para se posicionar atrás da viatura. O Tenente, com os documentos em mãos, pede que ele dê a bênção a todos ali de forma rápida e sútil para não levantar suspeitas. Portando a Bíblia na mão direita, Marcos a ergue em direção às cabeças daquelas pessoas, agora perplexas, proclamando:

– Deus, Pai Todo-poderoso, criador de todos nós, peço-Lhe humildemente que derrame Sua graça e misericórdia para cada um desses filhos honestos e trabalhadores e os presenteie com a sua bênção...

A oração é interrompida bruscamente pelo Tenente que dá um empurrão no orador, atira-lhe os papéis que segurava e ordena rispidamente:

– Senhor Marcos, que palhaçada é essa? Pegue as suas coisas, suma e não apareça nunca mais na nossa frente, senão o mandaremos para o inferno, para o inferno! Entendeu?

Entram na viatura e saem rapidamente, deixando Marcos sem entender o que havia feito de errado para aquelas criaturas o tratarem daquela forma.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 26/02/2016
Reeditado em 26/02/2016
Código do texto: T5556103
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