O Gato
Eu morava num lugar simples, em cima de um morro numa grande cidade. Porque era assim que eu era: simples, e distante do estilo de vida comum nas cidades. Acabara de ir morar sozinha pela primeira vez, mergulhando nas águas negras e profundas da independência e responsabilidade do mundo adulto.
Nada havia de ostentação em minha nova morada: um cômodo único que era um pouco quarto, um pouco cozinha, um pouco sala de estar e um pouco santuário para meus livros. Anexo, havia um banheirinho comprido e estreito. Do lado oposto à entrada, brotava uma segunda porta que daria para uma agradável varandinha se não ficasse o tempo todo emperrando.
E não havia espelhos. Não porque não quisesse: vinha passando por mudanças importantes e queria acompanhá-las. Mas ainda não tivera tempo, ou dinheiro, ou determinação para colocar um. E isso aumentava a sensação de solidão, pois era como se nem mesmo minha relação comigo mesma fosse completa. Era como se até do meu reflexo eu estivesse dando um tempo.
Seja como for, estava gostando de minha nova vida. Eu definia meus próprios horários, deixava as visitas irem e virem conforme queria, definia o que iria comer, quando iria dormir e como preencher o restante das lacunas do meu tempo.
Mas havia aquele gato.
Eu gostava de gatos, sempre gostei, tenho um que vem e vai quando quer (e às vezes vai mais do que vem), minha pequena morada era cheia de objetos que permitiam que um felino vivesse confortavelmente nesse lugar. Mas aquele gato, aquele específico gato de pêlos brancos e curtos com manchas pretas, havia algo de errado com ele.
Havia me seguido praticamente desde o instante em que me mudei. Quando eu estava em casa, sentava-se em frente à porta da varanda e miava, um miado agudo, quase um choro de criança, desesperado na tentativa de comover-me. Não funcionava.
Era apenas um gato, numa vizinhança cheia de gatos. Não era o meu gato, aquele que eu esperava, preocupada, que voltasse para casa logo. Nunca poderia ser meu gato. Se lhe desse comida, jamais iria embora, pensando que sempre seria alimentado aqui. Se o deixasse entrar, faria daqui sua morada. E como poderia abrigar mais um gato numa casa onde não cabia sequer meu reflexo?
A noite chegava e o gato insistia. Enquanto deitava em minha cama no canto do cômodo, lutando contra o calor e os pensamentos insones, ele miava incessantemente. Não sei quem aquele gato é, não sei de onde veio, ou qual história triste o trouxe até minha porta. Tudo o que sei é que precisa ir embora. Não é falta de empatia nem nada assim, é só a exposição dos fatos como realmente são. Não posso ajudá-lo. Estou num momento da vida em que preciso reencontrar meu espaço, sozinha. Não há lugar para seus miados, nem para os olhares verdes suplicantes que lança em direção à porta. Mal há lugar pra mim. Certamente, não há lugar para meu reflexo. Preciso reescrever minhas histórias tristes sozinha. E, provavelmente, é o que aquele gato terá de fazer também.