O CURANDEIRO

Todos nós estamos susceptíveis , em determinado ponto de nossa existência, a termos que lidar com o inusitado, e uma característica quase predominante desses “inusitados” é a capacidade que eles têm de deixar-nos marcas indeléveis, seja no corpo, na psique ou na alma. “O INUSITADO TRAÇA SUAS ARTIMANHAS...” já dizia alguém que não sei quem, lá num passado remoto...

Um desses inusitados surgiu em minha jornada lá pelos idos de 1971, quando eu contava com meus dezesseis anos de idade.

Nessa época, por força das circunstâncias, tivemos que nos mudar - eu, mamãe e mais quatro irmãozinhos menores cuja idade variava entre doze e dois anos - para a cidade de Caçapava, no Vale do Paraíba/SP. Havia ainda uma irmã recém-casada que já morava em Caçapava, assim como toda família de seu marido. Meus pais já estavam separados nessa época e papai morava em São Paulo com sua nova família...

Lá se vão muuuitos anos, mas lembro-me que nossa casa ficava numa esquina, num bairro que, para chegar nele, passávamos pela praça central da cidade, onde havia um coreto e um lindo jardim, seguíamos em frente, pegávamos a rua do 6 Batalhão de Infantaria do Exercito, atravessávamos a linha do trem que cortava a cidade e... Pena! Aos 57 anos minha memoria já não acessa os registros exatos da localidade assim como nomes de ruas, números, mas, lembro-me perfeitamente da casa: antiga, com uma pequena varanda e um jardinzinho na frente, onde Pituca , meu irmãozinho caçula cujos cabelos louríssimos e lisos eu mesma cortava ao estilo “Príncipe Valente” dos gibis da época, adorava brincar... Esse meu anjo mora no céu, tendo sido levado por Deus quando contava com três anos e meio e já estávamos de volta a Jacareí...

A casa tinha uma grande sala, dois quartos, uma copa, uma cozinha cuja porta dava para um enorme quintal que mais parecia um pomar de tão grande, cheio de arvores, horta, plantas, cercado por um muro alto, e onde curiosamente pouco ficávamos. Naqueles tempos as crianças e os adolescentes ainda podiam brincar e conversar na frente das casas ou nas ruas, sem medo de sequestros, assaltos. A vida era mais tranquila, descomplicada, e aparentemente mais segura.

Tínhamos uma vizinha a qual chamarei de dona Laura para preservar sua identidade, pessoa alegre, um tanto quanto espevitada, falante, mãe de três filhos: dois meninos e uma menina. Um dos garotos estava ficando cego de um olho, por certo por conta de uma catarata, pois, havia uma mancha branca sobre a vista, e numa das inúmeras conversas que tinha com mamãe, no portão, nas amenas tardes de verão, lembro-me que ela contou que o menino estava passando por um tratamento com um conhecido “curandeiro” que morava no bairro de Quiririm. Essa conversa, ouvida “de soslaio”, deixou-me intrigada. Um curandeiro?? Seria um mago, feiticeiro? E como seria um feiticeiro?! Cisma e medo foi o que senti, e saí de perto para não ouvir mais. Porém, de nada adiantou esse meu medo do desconhecido, pois conforme diz o ditado, “aquilo que mais tememos parece vir atrás da gente”... E foi o que aconteceu!

Numa certa tarde, dona Laura convidou mamãe para ir com ela em Quiririm, para a consulta do garoto com o curandeiro. Mamãe, na época espírita convicta, e passando por alguns eventos “estranhos” na velha casa onde morávamos, não pensou duas vezes.

–“Claro, Laura, vou sim, assim converso com ele sobre o que está acontecendo de estranho na minha casa. Quem sabe ele tenha alguma solução ou orientação a dar”.

Não preciso dizer que “tremi nas bases” ao saber que iríamos todos.

-“ Será um passeio agradável, crianças. O senhor Matias mora num sítio, junto com seu único filho de oito anos, e vocês poderão contar com a companhia dele, que lhes mostrará o local”!

Porém, à simples menção de que o tal curandeiro morava “no meio do mato” fez com que eu sentisse um calafrio daqueles, e uma péssima intuição...

-“O que o destino estará nos reservado dessa vez?!” (sim, sempre fui extremamente intuitiva como toda cigana legítima, mesmo que de quarta geração...!!).

E lá fomos nós, numa agradável viagem rápida de ónibus, numa linda tarde de sol.

Quando chegamos, descemos do ônibus ali “no meio do nada”, escalamos uma espécie de terreno íngreme, margeado por mata densa, e de repente, diante de nossos olhos, surgiu um senhor dos seus 48 anos, chapéu gasto de feltro na cabeça, roupas um tanto quanto surradas, magro, acompanhado de um garotinho sorridente, cabelos negros e lisos com franja comprida quase cobrindo os olhos, camiseta listrada, bermuda surrada e um par de botinas que me lembraram as do Jeca Tatú dos desenhos de propaganda do “Biotônico Fontoura” (tônico vitamínico para crianças, muito famoso na época).

-“ Então aquele era o curandeiro?!” Bem, pareceu-me apenas uma pessoa bastante humilde, e sem o tal chapéu pontudo ou a vassoura a lhe servir de condução, como eu tinha imaginado!!!

Cumprimentos feitos, fez com que o acompanhássemos à sua residência, se é que poderíamos chamar “aquilo” por esse nome! Tratava-se de uma espécie de choupana, sem portas ou janelas, apenas os batentes, e dentro dela tudo muitíssimo rudimentar, sacos de mantimento (talvez feijão, arroz e farinha) amontoados num canto, como se houvessem sido colhidos e ensacados há pouco tempo; um velho fogão a lenha, selas de cavalo e outros apetrechos dessa natureza. Mais parecia um celeiro! Percebi que havia outro cômodo, com certeza o quarto, e o banheiro haveria de estar em algum lugar...

Nosso anfitrião convidou-nos a sentar em cadeiras dispersas aqui e ali, ele próprio sentando-se numa velha poltrona de espaldar alto, que mais parecia um velho e fantasmagórico trono colocado bem no centro da sala. Todos acomodados, ele sentou-se, cruzando as pernas, apoiando o queixo numa das mãos, e começou a encarar-me de um modo tão escancarado que, imediatamente comecei a sentir forte dor de cabeça (Tensão? Medo?) e, é claro, pus-me a olhar em outra direção, buscando fugir daquele olhar insistente. E a conversa entre os mais velhos rolou solta, ele examinou os olhos do garoto dizendo que estava bem melhor e que em breve o pobrezinho voltaria a enxergar. Depois, ouviu atentamente os questionamentos de mamãe, deu algumas explicações, e a noite foi cobrindo com seu escuro manto todo o aposento. E eu alí, meio que alheia a tudo, esperando o momento em que minha pobre cabeça explodiria de tanta dor, mas sem conseguir deixar de perceber o quase fulminante olhar insistente que ele me lançava vez ou outra. Minha vontade era sair correndo!!!

Felizmente, às mães atentas nada passa despercebido, e tão logo nosso anfitrião acendeu umas lamparinas para iluminar o ambiente (pois é, na casa não havia eletricidade!!), mamãe fez a esperada pergunta a queima roupa:

-“ Senhor Matias, gostaria de saber por que o senhor, desde que aqui chegamos, encara minha filha de forma tão insistente ?? Percebo que isso a está deixando desconcertada e a mim assustada, sem querer ofende-lo, é claro!!!

Pego de surpresa, o nosso anfitrião ajeitou-se em seu “trono”, ao mesmo tempo em que uma “nuvem melancólica” anuviou seu semblante e ele então começou a contar a razão daquela reação:

-“ Quando jovem tive uma noiva por quem era loucamente apaixonado e plenamente correspondido. Fizemos planos de nos casar, tudo correu conforme o esperado, mas no dia do casamento, minha amada morreu... Foi enterrada vestida de noiva, como era costume na época. Com ela foi-se minha alegria, minha razão de viver, e levei muitos anos para recuperar-me de tal perda, porém, jamais completamente...”

-“ Mas, o que isso tem a ver com minha filha”? – perguntou mamãe. E a resposta que ele deu fez com que meus ossos se congelassem de susto e pavor...

-“Ocorre que sua filha é o retrato vivo de minha amada falecida. Até essa pintinha que ela tem, minha Adelina tinha, e quando a vi quase desfaleci, foi como se voltasse no tempo...”

Bem, nesse momento minha cabeça realmente ficou a ponto de explodir e eu pedi socorro dizendo que desmaiaria se tal dor não passasse. Então, o curandeiro imediatamente pôs-se de pé, aproximou-se de mim e disse:

-” Venha, me acompanhe..”

Aí, é claro, quase caí dura de pavor e olhei para mamãe, dessa vez sem conseguir articular palavra, de tanto medo, tentando pedir socorro a ela, ”por telepatia”, se é que tal coisa seria possível!! Mas ele percebeu meu receio e tentou acalmar-me dizendo:

-“ Não tenha medo de mim, jamais lhe faria algum mal. Vou fazer tua dor de cabeça ir embora”.

Olhou para mamãe, que aquiesceu num mudo consentimento, pediu-me que o acompanhasse não sem antes pegar uma vela branca numa gaveta, e saímos da casa rumo a um pequenino cômodo que ficava no quintal. Estava tudo muito escuro, e o cômodo estava vazio. Ele então acendeu a vela, colocou-a em minha mão e disse:-

-“Coloque ela aí no canto da parede”.

Imediatamente abaixei-me para colocar a vela no chão, junto ao canto da parede, mas ele disse que não era para colocar no chão, e sim no canto, entre uma parede e outra.

“-Mas como seria possível, meu senhor, sem nada para amparar a vela?? Se eu solta-la no canto, suspensa no ar, ela vai cair!”.

-“Não, minha jovem, não vai. Confie em mim. Coloque a vela no canto na altura de sua cabeça e solte...”.

E eu não tive alternativa senão obedecer ou sair correndo, gritando de pavor, e optei por obedece-lo. Ergui a vela com as mãos em direção ao canto da parede e soltei, e para meu espanto, ela ficou ali, suspensa no ar, acesa!!!!Jamais esquecerei tal visão: a vela, no ar, acesa...!!

-“E então, a dor está passando?”

Bem, não sei se por efeito do susto, percebi que doía bem menos, e tratei de sair dalí quase correndo, passando por cima dele, se preciso fosse.

Mamãe, sua amiga e as crianças vieram ao nosso encontro, preocupadas em como iríamos embora, pois já passava das 21hs. Seu Matias então se ofereceu para acompanhar-nos, a pé, ao terminal de ônibus circular que ficava a uns 2 km. E lá fomos juntinhos pela estrada escura e deserta, eu agarradinhas nos meus irmãos e nas outras crianças, e mamãe com sua amiga e o senhor Matias na frente, conversando sobre fenômenos da espiritualidade. Não se enxergava nada, a noite estava escura feito breu, naquela estrada de terra, e quando finalmente avistamos as luzes de Quiririm, foi como ver a flamejante espada de São Miguel Arcanjo reluzindo, mostrando que estava ali e estivera presente o tempo todo ao nosso lado, assim como de todos quantos confiam em Deus.

O ônibus já estava para partir, nos despedimos correndo e entramos aos atropelos, como que a fugir “dos fantasmas que seguram velas no ar”. Mas, da janelinha do ônibus, pude ver o olhar do curandeiro a acompanhar-me, até que eu não pudesse mais vê-lo...

Esse não é o final dessa história, mas depois disso o “inusitado traçou suas artimanhas” tantas vezes em minha vida, que não terei outro recurso a não ser narrar numa outra ocasião... É uma promessa!

Sandra Hasmann
Enviado por Sandra Hasmann em 04/02/2016
Código do texto: T5532973
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