O Veneno da Bisbilhoteira

Olhou pela janela e o acompanhou até perdê-lo de vista. Sentiu o coração aliviado depois de sua bondade. Precisava da oportunidade em sua vida. E aproveitou-a com afinco.

Descobriu que aquele sujeito, sofredor, era de fato, um de seus antigos auxiliares. Estava sumido e há décadas não obtinha notícias. As dificuldades para o reconhecimento aumentaram em função das angústias que moldaram o seu rosto e alteraram os padrões do corpo. Ficou irreconhecível.

No princípio da ausência daquele indivíduo, a preocupação invadiu os pensamentos da Sra. Anitta, mas logo se desfez do sentimento. Até mesmo a imagem facial foi apagada de seu arquivo fotográfico mental. Afinal de contas, ela, sempre muito atarefada, tinha interesse exclusivo no que fosse novidade. E o prato preferido era a vida alheia.

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A elegante Sra. Anitta era uma mulher bem resolvida. Com orgulho e seriedade aceitou e assumiu o título de “boatista”. E não era para menos. Entregava todos. E com pitadas de maldade. Acrescentava mentiras para que o delato, atrelado ao boato, causasse confusões, desentendimentos e caísse aos ouvintes com impacto negativo. Ela não tinha pudor em disseminar informações, sobretudo, as consideradas sigilosas.

E o pior: a danada sabia de tudo. Os mínimos detalhes. Nada passava despercebido. Descobria qualquer segredo. Parecia uma deusa da informação vigiando a cidade. Mas na verdade era nada mais que uma bisbilhoteira desocupada e fuxiqueira.

Todos os compromissos passavam por ela. Conseguiu esta façanha desleal depois de construir um sistema de espionagem e investigação capaz de provocar inveja em qualquer detetive particular. Até os mais experientes e conceituados.

Sua luxuosa casa era equipada com recursos de última geração para captação de imagem em movimento e áudio. Tudo muito nítido. As minicâmeras de alta definição foram espalhadas por cantinhos da cidade. A parafernália fora montada essencialmente para acompanhar a rotina dos moradores.

E assim tinha acesso às obrigações assumidas pelos membros da sociedade. As cumpridas e até mesmo as não concretizadas. Por ora, sorria em alto e bom tom. Divertia-se. Os vizinhos sentiam-se incomodados. O que mais intrigava é que ninguém entendia nada. Mudavam de canal na TV com o intuito de descobrir o motivo de tanta gargalhada. E as tentativas eram sem sucesso. Ficavam na curiosidade.

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Ninguém conhecia a casa da Sra. Anitta, mas sabiam que morava só. Apesar da elegância, era estranha. Atenta a ponto dos moradores temerem sua presença.

Conheciam sua fama de bisbilhoteira. Sabiam que ela tinha prazer em distorcer os fatos.

- Disfarça! Disfarça! Disfarça! Lá vem ela.

A frase era comum toda vez que a Sra. Anitta aproximava-se dos moradores. Conquistou mesmo o título oficial de maior bisbilhoteira da cidade. Com o conhecimento na ponta da língua, não poupava ninguém. Denunciava qualquer um, sem temer a sua própria vida.

Casos de infidelidade profissional e amorosa eram as suas preferidas. Sabia que geravam transtornos. E era rentável. Com as descobertas, lucrava alto para ficar em silêncio.

Mas a bela Sra. Anitta sentiu o peso da fofoca. A cruz que tanto jogou nas costas dos outros, numa determinada ocasião, pesou nas suas.

Para sua infelicidade, a viram bisbilhotando de perto um senhor inexpressivo, preguiçoso e aparentemente de má índole. Ele era conhecido como Cinzento. Vivia de um lado para o outro. Não falava com ninguém. Apenas perambulava com a face irônica. Parecia ser movido pela tristeza. Provocava medo em alguns transeuntes. Sentiam que poderia ser perigoso, porém não existiam ocorrências que tivesse feito mal a alguém.

Mas a cena da Sra. Anitta investigando a vida do Cinzento foi a refeição coletiva e digesta que todos queriam. Saborearam o prato com sabor de vingança.

Como gostava de um boato, boataram por todo canto que ela estava apaixonada pelo Cinzento. A informação ganhou notoriedade. Virou manchete dos jornais locais. Se espalhou pelas redes sociais. Tornou-se um dos fatos mais comentado na cidade.

Quando a Sra. Anitta passava pelas ruas rotulavam-na como a mulher do Cinzento. No começo não importou. Apenas fazia caretas. Mas a informação começou a incomodá-la. Tentava se defender. Revidava, mas era em vão. As palavras educadas que saiam de seus lábios eram abafadas pelo sorriso alto. Assim acontecia com as suas fofocas. Todas perderam importância. Ninguém mais queria ouvir e nem davam oportunidade para ela destilar o seu veneno. Era sempre vencida pela superioridade sonora das gargalhadas.

Sentiu vontade de sumir da cidade. Mudar. Mas era tarde. A notícia espalhou-se por todos os lugares. Onde chegava com o intuito de alugar uma nova casa, os proprietários negavam. Alegavam que ela queria mudar de casa e levar o Cinzento junto. Com a fama de preguiçoso, ninguém aceitaria os dois. A Sra. Anitta tentava desmentir, porém não tinha chance. Entristeceu. Não imaginava que uma calúnia pudesse causar tantos transtornos, desentendimentos e sofrimentos.

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Nocauteada pela tristeza, parou de sair de casa. Diminuiu o tom do sorriso que intrigava os vizinhos. Não tinha ânimo. Até as inúmeras câmeras, que tanto alegravam, perderam a relevância. As informações sigilosas, por mais quente que fosse, não tinha relevância. Não tinha com quem falar. A fofoca tornou-se insignificante. Sua vida tornava-se sem graça a cada amanhecer.

Tudo parecia perdido para a Sra. Anitta. Nenhum morador queria saber de seus boatos. Refletiu por alguns minutos e concluiu:

- Já que minhas preciosas interpretações não são relevantes para nenhum dos ingratos moradores, vou buscar informações que satisfaçam a mim mesma.

Pensou mais um pouco. Caminhou pela sala com apenas alguns vídeos ligados. Fitou a TV e viu o Cinzento bem próximo a um jardim. Olhava com carinho para o pequeno conjunto de flores.

- É isto! Gritou a Sra. Anitta com um pequeno sorriso estampado no rosto. E continuou – preciso saber mais informações sobre aquele cidadão.

Decidiu investigar a fundo a vida do Cinzento. Não tinha mais nada a perder e resolveu então descobrir alguma coisa sobre o homem misterioso. E finalizou:

- Já que causou-me tantos problemas, fruto de especulações, quem sabe com a verdade tudo possa mudar. Pelo menos assim espero.

Após os dizeres, respirou fundo e partiu para a seu novo tento, disposta a colocar sua ideia em prática.

Ao sair de casa, depois de muito tempo, as gargalhadas continuavam. Já não tentava se defender. Não dava importância. Fingia que não era com ela. Estava concentrada em sua missão.

Evitou qualquer discussão. Sabia que não teria chance. A população estava unida por um ideal. Com os objetivos bem definidos e resolvidos. Queriam e conseguiam anular as investidas errôneas e extorsões praticadas pela bisbilhoteira.

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Cautelosa, Sra. Anitta aproximou-se daquele senhor. Ele continuava diante do jardim, na mesma posição na qual o vira pelo sistema de espionagem.

Percebeu que parecia confuso. Continuou observando aquele cidadão que não importou-se com sua presença. Ela apertou os olhos. Seus pensamentos borbulharam, como se o arquivo de lembranças fossem levemente acionados.

Fechou os olhos e forçou a memória. Após alguns instantes, lembrou e falou em alto tom de voz:

- É você amigo? É você mesmo! Você trabalhou para mim. Lembra? Quanto tempo. O que aconteceu com você?

O Cinzento não respondeu. Continuou estático diante do jardim.

Sra. Anitta chegou mais perto. Perguntou se estava tudo bem. Ele levantou a cabeça vagarosamente e fitou-a de cima a baixo e exclamou:

- Como é bonita!

Acanhada, ela piscou os olhos e respondeu com a voz macia e sensual:

- Muito obrigada! Não imaginava que fosse tão gentil! Tão…

- Não! Não falo de você. Estou me referindo a estas flores.

Imediatamente ela guardou o sorriso. Sentiu raiva e teve vontade de ir embora. Retornar para sua casa e continuar sua vida medíocre. Porém pensou mais um pouco. Queria saber a razão de o Cinzento ficar tanto tempo ali, estático, diante o jardim. Por diversas vezes assistiu aquela cena, mas nunca deu importância. Agora, mais do que nunca, estava curiosa.

Insistiu em tentar um diálogo. Perguntou por que ficava parado, altas horas, no mesmo lugar. Tentou uma. Duas vezes. Na terceira tentativa ele respondeu, com a voz triste:

- Estou arrependido! Queria apenas pedi-la perdão. Não foi minha culpa. Não queria matá-la.

Sra. Anitta assustou-se. Imaginou que estava diante de um assassino. Calculista e estúpido. E certamente cometera um crime ali naquele jardim. Sem dar chance para sua vítima. Arrependeu-se de ter dado trabalho para um criminoso.

Pensou em voltar logo para sua residência e preparar um material. Distribuir as informações para que as pessoas tivessem cuidado com o Cinzento. Deduziu que assim, teria chance de salvar sua reputação. Virou e preparou para sair de fininho, quando uma voz triste a chamou:

- Senhora, espere um pouco. Não vá! Por favor!

Ela sentiu o corpo gelar. Suas vistas embaçaram. Não conseguia correr. Suas pernas não respondiam. Virou-se vagarosamente e encarou-o. Preparou-se para ajoelhar e implorar que ele não a matasse. Quando começou a inclinar o corpo, foi surpreendida pelas confidências daquele sujeito:

- Num momento de distração pisei em lindas, belas e inofensivas flores. Matei todas. Foi quando instalava algumas câmeras pela cidade. Depois desse dia o sentimento de culpa roubou minha paz. A tristeza passou a acompanhar-me.

O medo que rondava os pensamentos da Sra. Anitta perdeu espaço para o arrependimento. Lembrou-se que ele instalou as câmeras de espionagem. E ela pediu que não se importasse com nada. Que ignorasse a natureza, eletricidade e até mesmo animais.

Sra. Anitta, magoada, baixou a cabeça. Ele parecia não recordar dela. Fazia muito tempo.

Não encontrou palavras para sair daquela situação. E ele continuou:

- Agora, queria apenas pedir perdão. Pode ajudar-me?

Ela levantou a cabeça. Fitou-o com carinho. E decidiu ajudá-lo. Apesar de não saber como. Mas buscava uma solução que amenizasse a dor emocional do Cinzento. E para ela também, já que não estava isenta da agressão ao meio ambiente.

Mesmo com o título de bisbilhoteira, Sra. Anitta tinha no fundo do coração, bem lá no fundo, um pouco de bondade. E resolveu usá-la para ajudar aquele homem.

Para tentar tranquilizá-lo inventou uma história. Disse ser amiga e protetora das flores. E que tinha autonomia para cobrar preservação, bem como avaliar o comportamento das pessoas diante delas. E partiu para sua investida:

- Caro amigo, se não teve intenção, concedo-lhe desculpas. Fique tranquilo e em paz com seu coração. Só prometa que não mais irá destruir flores, plantas e nada do meio ambiente. Combinado?

- Tudo bem. Muito obrigado. Não sabe como sinto-me bem agora!

Após a conversa, o Cinzento sorriu. Nem lembravas a última vez que teve o prazer de distender os lábios. Ficou contente. Porém, não se deu por satisfeito:

- Muito obrigado mesmo! Mas não quero apenas desculpas. Quero o perdão.

- Isto eu não posso conceder-lhe. Perdão é só com a Mãe Natureza.

- Então vá atrás dela e informe-a sobre a minha intenção. Você deve saber onde ela se esconde. Lembrei que você é a senhora mais bem informada em todo este lugarejo. Certamente sabe onde está a Mãe Natureza.

Sra. Anitta sentiu um aperto no peito. Pensou logo e tentou se livrar daquela incógnita:

- Lembrei! Como pude esquecer-me! Já tivemos situações assim. A Mãe Natureza é muito ocupada. A orientação nestes casos é que faça uma oração. E nela, inclua o perdão e o encontrará. Assim ficará tudo bem.

- Senhora, tem outro problema, não sei orar. Pode ajudar-me?

A Sra. Anitta, sem paciência, respirou fundo. Um filme passou em sua cabeça. Lembrara de quantas pessoas prejudicou e como foi prejudicada. Rapidamente conseguiu enxergar aquela situação como uma chance para minimizar os seus delitos. Resolveu ajudá-lo a fazer as orações.

Ao terminar as súplicas, ambos sentiram os corações confortáveis. Concluíram que estavam perdoados.

Ela percebeu que o Cinzento não tinha mais aquela expressão facial de descontentamento com a vida. E ela gostou de ajudar e viu que poderia fazer mais por ele. Carinhosamente convidou-o para uma visita a sua luxuosa casa. Disse que daria a ele uma boa refeição, cederia o banheiro para um banho e doaria algumas roupas unissex.

Aquele convite alegrou Cinzento. As orações e o fato de sentir-se perdoado, começava a transformar sua vida. A começar pela quebra do desjejum que já durava um longo tempo.

Seguiram para residência da Sra. Anitta. Os moradores, ao observarem os dois caminhando pelas ruas, ficaram calados. Pasmos e estáticos. E ela ergueu a cabeça e segurou nas mãos daquele ser discriminado. Não se importava com as críticas e rejeições. Reconheceu que ele tinha alma singela, coração puro e sangue limpo correndo pelas veias. Era apenas um ser humano julgado por sua aparência descuidada e pelas roupas surradas. Parecia que ninguém imaginava que dentro daquele pedaço de pano sujo e pelas barbas a fazer, existia, antes de tudo, uma vida preciosa.

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Depois da higiene, Cinzento sentou-se a mesa e deliciou o banquete preparado pela Sra. Anitta.

Sorriram juntos. Conversaram por mais algumas horas. Ela deu-lhe dinheiro suficiente para recomeçar a vida. Ele aceitou com gratidão e despediu-se.

Saiu da residência da Sra. Anitta com a alegria estampada em seu rosto. E não era para menos. O corpo coberto por roupas limpas, as barbas feitas e a refeição em dia, sentia-se outro homem.

Sra. Anitta alegrou-se com os deveres cumpridos. Fez mais uma oração e decidiu abandonar a fofoca. Resolveu que utilizaria seus equipamentos de espionagem para trabalhar exclusivamente em proteção ao meio ambiente, afinal de contas, como disse informou ao Cinzento, a Mãe Natureza é muito ocupada.