O ato de falar requer cautela
 
 
                                         “Tudo que não puder contar como fez, não faça!”
                                                                                       (Immanuel Kant)
 


 É bom ficar atento à voz da Filosofia. E até que se possa provar ao contrário ela tem sido o ponto de equilíbrio entre o pensar e o fazer. E foi pensando nisso que me lembrei da minha velha amiga, Ana Lúcia, ao me contar um de seus grandes feitos (segundo ela), durante o ano de 2015.
 
O calendário de 2016 já se movimentava, e ela se encontrava distante. Tinha viajado para sua terra natal, lá na região que integra o Piemonte da Chapada Diamantina. Por não ter nos encontrado ainda, para o abraço de Ano Novo, a saudade aumentava. E assim que ela retornou à cidade grande, marcamos uma caminhada pela orla da Região Metropolitana de Salvador (RMS), numa praia do Litoral Norte. Como ela sempre me traz novidades, eu estava ávida por ouvi-la e fui logo perguntando o que me contava de novo. Ela me olhou de modo atravessado e sorriu com desdém, antes de me responder:
– Velha amiga, sinto muito, desta vez eu não tenho boas novidades. Encontrei lá, pelo interior, foi muita gente lamentando o avanço dos casos de virose, principalmente a tal chikungunya, que você já sabe. – Inconformada com aquilo eu retruquei: você não tem nadica de nada interessante pra me contar? E ela diz:
– Ter eu tenho. É uma novidade daqui que levei pra lá. E acho que não lhe agradaria, porque com ela parece que decepcionei quase toda a minha família. Pelo visto, teria sido melhor eu ter ficado de boca fechada. – Isso me deixou intrigada, e perguntei pra Ana Lúcia: criatura, o que você fez de tão horrível, assim?  Pelo que eu sei você nunca decepcionou sua família.
 
Confira o nosso dialogo:
 
– Neste quesito família, você está quase certa, amiga. Só que tudo tem uma primeira vez. E essa primeira vez, infelizmente, aconteceu. E foi humilhante. Todos que estavam ali riram de mim, abertamente...
– Tá bom, Ana Lúcia! Você sabe que amiga, de verdade, não costuma rir uma da outra. Me conta, pelo amor de Deus, essa novidade tão humilhante!
– Pois bem! Quer saber, que seja logo. Lembra-se da Gleide, minha faxineira?
– Lembro. Por sinal faz um excelente trabalho.
– Também acho. Mas ninguém é perfeito. A Gleide, durante a última faxina, achou três ovos dentro do meu maleiro.
– O quê? Três ovos no seu maleiro?
– Sim, três ovos; e quis jogá-los fora. Só que eu a impedi. Mas não eram de galinha, não. Porque lá em casa não entra galinha... Eram uns ovos pequeninos, bem branquinhos, lindos! Pareciam ser de passarinho. Um já tinha eclodido. E os dois estavam lá... A Gleide, com os olhos esbugalhados, aponta para eles e grita: “Ui! já seeei! é de lagartixa, eu tenho medo! Eu tenho medo! D. Ana Lúcia, vou jogar fora! Eu tenho medo!”.
– Não acredito. Eu também morro de medo, Ana Lúcia! E você fez o quê?
– Ora! eu tomei as rédeas da situação. Peguei um pano branco, coloquei os ovinhos sobre ele e disse para a Gleide me trazer um palito. Assim ela procedeu. Em seguida, pedi que ela se afastasse de mim e fechasse os olhos. Enquanto isso, eu, movida pela curiosidade, abria mais e mais os meus olhos, quando, subitamente, após o primeiro toque naquele pequeno invólucro, senti um movimento brusco, tipo uma rabiada, e parou... Ao abrir, eu conferi e gritei: é uma lagartixa! Estou fazendo o parto de uma lagartixa! A Gleide tremeu. Tremeu de medo. E eu tremi de emoção. Aí vi minha responsabilidade aumentar, pois aquele ser indefeso ficou ali inerte, meio atordoado sobre o pano... Corri com ele escada abaixo e procurei um canto escuro para abrigá-lo. Daí veio a pergunta: “Você está fazendo a coisa certa?”. Eu só conseguia responder pra mim mesma que estava salvando uma vida. E para minha maior alegria, o animalzinho, apesar do meu parecer de leiga, não dava sinal de microcefalia, felizmente. Mas vale lembrar que as lagartixas são insetívoras, e que elas são devoradoras de mosquitos. Algo que nos favorece, no momento. Não é?
– Sim, Ana Lúcia. E eu admiro a sua coragem. Mas só não sei aonde você quer chegar com isso, e em que ponto você decepcionou a sua família.
– Não sabe? Pois você vai saber agora. Boa parte da minha família é comerciante, gosta de lidar com dinheiro. E eu não sou dada ao mundo dos negócios. E a novidade que levei pra lá é que acabei de me aposentar. Alguns me perguntaram o que eu iria fazer a partir da aposentadoria. Então respondi que em vez de pertencer a classe dos “vagabundos” (segundo FHC), eu preferia virar parteira de lagartixa, já que a experiência me agradou e deu certo.
 
A partir daí, lancei o meu PROJETO: Criatório de lagartixas para acabar com a proliferação de mosquitos nas cidades. OBJETIVO: erradicar as três doenças - dengue, zica e chikungunya - transmitidas pelos mosquitos do gênero Aedes. Não é fantástico, amiga? E os três ovinhos tinham tudo a ver. Aquilo era um aviso... Todavia, foi um desastre ao revelar isso. A começar pela minha família: todos riram na minha cara. Levantaram-se da mesa um a um. Para piorar a situação, ainda ouvi a minha irmã dizer: “Tem jeito não! Agora ela deu pra filosofar até com os lagartos”. E eu, amiga, para não me sentir tão por baixo, falei em bom tom: ORA ESSA! João Ubaldo Ribeiro, que é João Ubaldo Ribeiro, fez sucesso com O sorriso do lagarto, obra respeitadíssima, eu também posso me dar bem, diante dessa crise toda, apostando nas lagartixas...
 
E senti que o mal não estava naquilo que eu tinha feito, mas em falar aquilo que eu pensava em fazer.
– E agora, Ana Lúcia?
– Agora?  E tem trabalho melhor do que escrever besteira?

Janeiro, 2016.