A DÍVIDA
     -Então o senhor é o seu Arlindo Dias, de Mutum?
     -Sim, sou e te conheço, doutor.
     -Pode ser que o senhor se lembre de mim. Meu pai foi meeiro do senhor.
     -Sim, o falecido Gumercindo. O Guma, como era conhecido.
     -É sim, faleceu cedo. Eu tinha apenas onze anos.
     -É, depois da morte dele, vocês vieram para a capital. E sua mãe?
     -Faleceu há cinco anos.
     -Você tem uma dívida para me pagar.
     -Dívida? Como assim? Eu fiquei devendo alguma coisa pro senhor lá na fazenda?
     -Você não. Mas seu pai sim.
     -Meu pai, sô Arlindo? Se pensar bem, se fosse hoje, o senhor é que teria que nos pagar pelo contrato de parceria. Meu pai morreu por causa do veneno que o senhor mandou que ele jogasse na lavoura.
     -Deixa disso menino. Naquele tempo não tinha essas coisas de sindicato. Eu falo é do dinheiro que ele pegou emprestado. E foi por sua causa.
     -Por minha causa? Conta essa história direito, seu Arlindo.
     -Foi sim. Foi numa novena de São Sebastião que tinha na vila. Então você embirrou querendo o tal do pão com molho, coisa que só se via em dias de festa na igrejinha. E seu pai não tinha um tostão naquele início de ano. Então emprestei para ele uns duzentos réis para ele comprar um pão com molho pr’ocê todo dia da novena.
     -E ele não pagou o senhor?
     -Não, ele se foi antes da colheita. Ele ia me pagar com a parte do arroz que lhe tocasse.
     -Tá bom. Quanto eu lhe devo hoje?
     -Não. Tira as mãos desse bolso. Eu não quero receber em espécie.
     -Então diga quanto é. Eu faço questão de pagar o senhor ainda hoje.
     -Tá insinuando que tenho pouco tempo de vida nessa cama de hospital, doutor?
     -Ora, o senhor sabe que sim.
     -Então vou dizer como quero que você me pague.
     -Como?
     -Tem um negócio aqui na cidade grande que sou louco pra comer. Sei que nada mais para no meu estômago, mas eu queria que você me comprasse um por dia, até eu bater as botas.
     -Então diga logo. Não é bom o senhor ficar conversando muito.
     -Parece que ali fora, na rua, toda noite estão vendendo.
     -Então fala logo, que eu faço questão de pagar essa dívida do meu querido pai, que Deus o tenha em um bom lugar.
     -Eu quero comer o tal de roti-dogui que eles vendem aqui na cidade grande.
     E assim, sô Arlindo comeu um cachorro quente por dia nos seus três últimos dias de vida.
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 19/01/2016
Reeditado em 04/12/2016
Código do texto: T5516523
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