Absurda Mente
— Naquele lugarejo não era mero clichê que a medicina fosse um sacerdócio. Era o único profissional em um raio de mais de cinquenta quilômetros. Meados do século XX e não havia um hospital decente na região! Um médico, ali, haveria de oferecer dedicação total, dia e noite... O que fazer? O doutor nascera ali mesmo, fora estudar na capital e acabara regressando para atender à orientação dos pais. Era o orgulho da família! Agora, depois de décadas não dava para recomeçar carreira em um local que oferecesse mais oportunidades. Acordou com as desesperadas batidas à porta. Três horas da madrugada:
— A mulher de Chico Martins está muito mal. É o primeiro filho. Parece que está complicado. Faz dois dias que entrou em trabalho de parto. A mãe e duas tias estão com ela, mas não dão conta. Melhor o doutor me acompanhar e resolver a questão com ciência! Não dá para trazer a coitada para a cidade, está sofrendo muito e as estradas estão que é lama pura.
O velho médico trocou a flanela e chinelas por brim e botinas, pegou o chapéu de feltro e o instrumental em uma mochila. O fusca desdobrou-se pelas estradas enlameadas. Curvas, subidas e descidas, mais ladeiras deslizantes, buracos e lama... Motorista e passageiro entabularam conversa:
— Por que você falou em terminar o parto “com ciência”?
— A mulherada da vizinhança está com umas benzeduras... Colocaram no pescoço da grávida, um rosário de sementinhas de melão de São Caetano. Ainda, ela teve que riscar no chão uma cruz com o dedão do pé, invocando Nossa Senhora do Bom Parto.
— Ah! Isso é oração, não adianta nada, tampouco prejudica!
— Tem mais umas coisas, senhor não fique bravo! A moça teve que engolir três caroços de feijão-mouro com uma xícara de urina do marido, enquanto agachava sobre uma gamela emborcada.
— Isso já é ignorância! Risco de infecção!
— Pois é! Já fizeram que ela carregasse uma pilha de tijolos para fazer força e o bebê descesse, nada adiantou! Mandaram que subisse numa árvore. Impossível com o barrigão.
— Quem vai rezar, sabendo desses acontecidos, sou eu! Vamos logo antes que algo grave ocorra!
O carro continuou serra acima debaixo de chuvisqueiro suave. Depois de um trecho de derrapagens, o motorista anunciou em meio aos suspiros do acompanhante.
— Doutor, daqui para frente o automóvel não vai. Seguimos a cavalo.
A casa estava em rebuliço quando o doutor entrou. Lamparinas acesas deixavam ver uma cena ridiculamente grotesca — a parturiente de quatro no chão, gemia, chorava e invoca todos os santos do seu repertório. Nas suas costas fora amarrada uma sela, daquelas usadas em montaria. Assentado na peça, de cócoras, o marido soltava todo o peso sobre a mulher; mesmo assustado obedecia ao conselho das doulas Afirmavam que ela precisava fazer força, que só assim o bebê viria ao mundo.
— Que é isto? Querem matar mãe e filho? Meu Deus! — intervém o médico indignado, já empurrando o homem, desamarrando o apetrecho da mulher e pedindo socorro: a Deus para ter compreensão e paciência mediante tal disparate, às mulheres para que providenciassem os apetrechos de que necessitaria para tentar obter um a boa solução para todo aquele embaraço.
— Não afobe, doutor! É uma simpatia para a criança nascer. — acode um dos presentes.
— Ah! Vocês estão enganados! A simpatia não é bem assim não. Vamos nos organizar! A gestante, a mãe dela e eu vamos para o quarto. Alguém aí ponha água para ferver e leve para lá, junto com toalhas limpas. Forrem a cama e tragam bastante luz para nós.
Com esta fala, o médico, ainda estarrecido pelo quadro visto, passou ao comando das ações. E, complementou as ordens:
— Ponham a cela em Chico Martins e o mais forte entre vocês aí monte e dê umas esporadas nele. Fiquem assim enquanto durarem os trabalhos do parto. É esta a simpatia! Assim as chances de sucesso são maiores e poupamos desgastes.
— Só me faltava esta! — o doutor resmungando, dirigiu-se para o cômodo em que instalaram a parturiente. Ele mesmo não entendera como tivera o espírito de improvisar tamanha bobagem em relação à “simpatia” que executavam. Pobre mulher, servindo de cavalo ao marido! Era de mais... Aquela exagerada simplicidade de espírito o deixava extremamente irritado.
Muita movimentação por cerca de mais uma hora. Na sala, o marido montado pelo vizinho, suava em bicas, evitando brigar, chorar, para exibir machismo. Atrás da porta fechada, gritos de dor, palavras de exortação, água, toalhas, os fórceps... e o choro da criança! Que alívio!
O médico sai do quarto, vitorioso e sentindo-se vingado ao notar o marido exausto:
— É um menino. Estão bem mãe e filho.
O parteiro não conseguia conter a alegria. Vencera as ideias ultrapassadas, agressivas daquela gente tão afastada da civilidade!
— Viram como foi rápido? É que vocês estavam fazendo a simpatia errada! Foi só inverter cavalo e cavaleiro que resultou em benefício. — e arrematou, juntando seus pertences:
— Bem, quem me leva para a cidade?
— Eu poderia levá-lo, doutor, porém estou muito machucado e doído. Já vou acertar com o senhor e vou pedir para o primo acompanhá-lo. —respondeu Chico Martins, satisfeito com o nascimento do filho e sofrido com os procedimentos anteriores.
Acertadas as contas, o médico pediu para examinar o maltratado pai. Curou algumas esfoladelas provocadas pelas esporadas recebidas. Partiu aconselhando:
— Na próxima gestação, procure-me antes, para evitarmos tantas dores!
— A mulher de Chico Martins está muito mal. É o primeiro filho. Parece que está complicado. Faz dois dias que entrou em trabalho de parto. A mãe e duas tias estão com ela, mas não dão conta. Melhor o doutor me acompanhar e resolver a questão com ciência! Não dá para trazer a coitada para a cidade, está sofrendo muito e as estradas estão que é lama pura.
O velho médico trocou a flanela e chinelas por brim e botinas, pegou o chapéu de feltro e o instrumental em uma mochila. O fusca desdobrou-se pelas estradas enlameadas. Curvas, subidas e descidas, mais ladeiras deslizantes, buracos e lama... Motorista e passageiro entabularam conversa:
— Por que você falou em terminar o parto “com ciência”?
— A mulherada da vizinhança está com umas benzeduras... Colocaram no pescoço da grávida, um rosário de sementinhas de melão de São Caetano. Ainda, ela teve que riscar no chão uma cruz com o dedão do pé, invocando Nossa Senhora do Bom Parto.
— Ah! Isso é oração, não adianta nada, tampouco prejudica!
— Tem mais umas coisas, senhor não fique bravo! A moça teve que engolir três caroços de feijão-mouro com uma xícara de urina do marido, enquanto agachava sobre uma gamela emborcada.
— Isso já é ignorância! Risco de infecção!
— Pois é! Já fizeram que ela carregasse uma pilha de tijolos para fazer força e o bebê descesse, nada adiantou! Mandaram que subisse numa árvore. Impossível com o barrigão.
— Quem vai rezar, sabendo desses acontecidos, sou eu! Vamos logo antes que algo grave ocorra!
O carro continuou serra acima debaixo de chuvisqueiro suave. Depois de um trecho de derrapagens, o motorista anunciou em meio aos suspiros do acompanhante.
— Doutor, daqui para frente o automóvel não vai. Seguimos a cavalo.
A casa estava em rebuliço quando o doutor entrou. Lamparinas acesas deixavam ver uma cena ridiculamente grotesca — a parturiente de quatro no chão, gemia, chorava e invoca todos os santos do seu repertório. Nas suas costas fora amarrada uma sela, daquelas usadas em montaria. Assentado na peça, de cócoras, o marido soltava todo o peso sobre a mulher; mesmo assustado obedecia ao conselho das doulas Afirmavam que ela precisava fazer força, que só assim o bebê viria ao mundo.
— Que é isto? Querem matar mãe e filho? Meu Deus! — intervém o médico indignado, já empurrando o homem, desamarrando o apetrecho da mulher e pedindo socorro: a Deus para ter compreensão e paciência mediante tal disparate, às mulheres para que providenciassem os apetrechos de que necessitaria para tentar obter um a boa solução para todo aquele embaraço.
— Não afobe, doutor! É uma simpatia para a criança nascer. — acode um dos presentes.
— Ah! Vocês estão enganados! A simpatia não é bem assim não. Vamos nos organizar! A gestante, a mãe dela e eu vamos para o quarto. Alguém aí ponha água para ferver e leve para lá, junto com toalhas limpas. Forrem a cama e tragam bastante luz para nós.
Com esta fala, o médico, ainda estarrecido pelo quadro visto, passou ao comando das ações. E, complementou as ordens:
— Ponham a cela em Chico Martins e o mais forte entre vocês aí monte e dê umas esporadas nele. Fiquem assim enquanto durarem os trabalhos do parto. É esta a simpatia! Assim as chances de sucesso são maiores e poupamos desgastes.
— Só me faltava esta! — o doutor resmungando, dirigiu-se para o cômodo em que instalaram a parturiente. Ele mesmo não entendera como tivera o espírito de improvisar tamanha bobagem em relação à “simpatia” que executavam. Pobre mulher, servindo de cavalo ao marido! Era de mais... Aquela exagerada simplicidade de espírito o deixava extremamente irritado.
Muita movimentação por cerca de mais uma hora. Na sala, o marido montado pelo vizinho, suava em bicas, evitando brigar, chorar, para exibir machismo. Atrás da porta fechada, gritos de dor, palavras de exortação, água, toalhas, os fórceps... e o choro da criança! Que alívio!
O médico sai do quarto, vitorioso e sentindo-se vingado ao notar o marido exausto:
— É um menino. Estão bem mãe e filho.
O parteiro não conseguia conter a alegria. Vencera as ideias ultrapassadas, agressivas daquela gente tão afastada da civilidade!
— Viram como foi rápido? É que vocês estavam fazendo a simpatia errada! Foi só inverter cavalo e cavaleiro que resultou em benefício. — e arrematou, juntando seus pertences:
— Bem, quem me leva para a cidade?
— Eu poderia levá-lo, doutor, porém estou muito machucado e doído. Já vou acertar com o senhor e vou pedir para o primo acompanhá-lo. —respondeu Chico Martins, satisfeito com o nascimento do filho e sofrido com os procedimentos anteriores.
Acertadas as contas, o médico pediu para examinar o maltratado pai. Curou algumas esfoladelas provocadas pelas esporadas recebidas. Partiu aconselhando:
— Na próxima gestação, procure-me antes, para evitarmos tantas dores!