Ciclo

Chegou cedo. Sem camisa, short mal feito de pano de saco de batatas, ou cebolas. O pano estava surrado, precisou fazer três voltas para tapar os buracos. Estava descalço o coitado. Feio, diziam. Sujo, reclamavam. Fedido, queixavam.

Ele sentava no chão, tinha costume. Não deram nem pena, nem papel, se quisesse tinha que escrever com o pensamento. Prestava a atenção. Lia os livros escondido, durante a pausa para o lanche. Ele não tinha lanche e nem queriam brincar. Os livros o divertiam mais. A professora o surpreendeu lendo o livro. “Não toque os livros com essas mãos sujas, menino”. “Desculpe professora, só queria ler”. “E você sabe ler” “leio alguma coisa, pouco”. “Leia para mim”.

Pegou o livro e começou a ler. Lia como se cantarolasse as palavras, ela encantou. É um poeta, convenceu-se. Deu pena e papel. Mandou sentar na cadeira. Emburraram. Gente como ele tinha que sentar mesmo era no chão, como hábito. Semanalmente a professora pedia para ler. Os garotos gostavam, mas só da leitura, o menino, coitado, continuava, feio, sujo, fedido, e agora faminto. Sim, tinha fome. Não tinha pão. Chegou gente do estrangeiro, não precisavam mais da mãe dele para cozinhar. Parou de estudar. Ou estuda e morre de fome, ou trabalha. Levou a pena de presente, de lembrança, queria recordar.

Foi para praça vender poesia. Escrevia em papel de pão, em papel que achava na rua, vendia pouco. Ganhava pouco. Comia pouco. A arte de manejar a pena, não ajuda gente como a gente, pensava. Começou a trabalhar na feira. Era bom, podia levar as frutas e os legumes que já estavam ruins. Chegava em casa, a mãe, aproveitava o que dava. Fazia sopa, comiam as partes boas das frutas. Dormia de barriga cheia. Já não era mais faminto, porém tinha vontade. Queria comer carne, e uma porção de coisas que pareciam tão gostosas na confeitaria. O dinheiro não dava. Cresceu. Casou. Teve muitos filhos. Quis ver os meninos na escola, mas ou estuda e morre de fome, ou trabalha. Ainda ganhava pouco, ainda reaproveitava os alimentos velhos da feira. Ainda sonhava em vender poesias. A arte de manejar a pena, não ajuda gente como a gente, falava, talvez tentando convencer a si mesmo, pois ainda sonhava cantarolar as palavras.

Tornou-se um mantra, gente como eu tem é que trabalhar pesado. E trabalhava pesado. Ganhava pouco. Comia pouco. Os gastos eram muitos. Os meninos não estudavam mais. Iam de um lado para o outro, trabalhando para ajudar nas despesas. Desanimaram. Sonhavam com as palavras que viam desenhadas pelas ruas. Queriam aprender a escrever as palavras e ler todas que viam. Mas papai dizia: a arte de manejar a pena, não ajuda gente como a gente. Convenceram. Cresceram. Casaram. Tiveram um monte de filhos. Aproveitavam os alimentos que ninguém mais queria da feira. Os meninos foram para a escola Estudaram pouco. Não tinham dinheiro para os cadernos e para o lápis. Faltavam recursos para os uniformes que deviam usar. Sonhavam. Queriam ser poetas como o vovô, que sentava na cadeira e falava bonito, as palavras dançavam em sua boca. Desistiram. A arte de manejar a caneta não ajuda gente como a gente. Trabalhavam. Gente como nós tem que trabalhar pesado. Sonhavam com outra realidade. Desanimaram. Cresceram...

Ivy Silva Cunha