Dirigir Descalço é Permitido?
 

     José Pimenta circulava entre clientes e funcionários na sua concessionária Volkswagen no polo comercial da região. O saguão estava lotado. Um modelo novo fora lançado na semana anterior. Muitos desejavam trocar o velho automóvel pela novidade. Diziam que aquele ia pegar. Seria um sucesso de vendas, e de desempenho nas ruas e estradas. Porte médio, linhas arrojadas, motor refrigerado a ar, câmbio com quatro marchas — as famílias cobiçavam o espaço interno maior e as qualidades do Fusca, que era o veículo da moda até então.

     Havia certa gala na situação. Os funcionários trajavam terno escuro, camisa de colarinho com gravata, ostentando sorrisos mascarados e acenos gentis. Arranjos com bexigas coloridas ornavam as paredes claras. Ouvia-se suave música de fundo, bolero de Ravel. Havia, para os visitantes se servirem, uma mesa com café, chá, bolachas, biscoitos e doces ao lado das xícaras, talheres e pratinhos.

     Já há algum tempo, ao lado da transparente porta de vidro, permanecia uma figura humilde que contrastava com a brancura do piso, com os móveis e luminárias de design atual, com a decoração alegre e, sobretudo, com a elegância dos possíveis compradores das brilhantes fileiras de carros perfeitamente encerados e dispostos no salão.

     O estranho ser usava roupas simples e desgastadas. A cinta grosseira de couro cru e os suspensórios de barbante seguravam as calças de brim cinzento, com barras curtas que deixavam à mostra os pés descalços. A camisa de riscado trazia no bolso um lenço encardido e um montículo de palha. Entreviam-se fios de cabelos oleosos debaixo do velho chapéu de feltro.

     O homem ficou ali esquecido por horas seguidas, indiferente ao burburinho, ao corre-corre e ao palavrório. Até o proprietário da agência se envolvera nas apresentações e vendagem, tal era a movimentação no recinto. Somente a dedicação dos empregados não fora suficiente.

     Entretanto, o capiau parecia não pertencer àquele convívio. Ninguém se dirigiu a ele, exceto um garoto que, curioso, chegou-se ao canto para indagar o que levava no grávido embornal dependurado ao ombro. Ele não respondeu atento à conversação distante dos vendedores. O menino voltou para junto dos pais.

     Vários negócios, compras, trocas, esperas pela cor preferida, transferências bancárias. Já anoitecia... José Pimenta juntava os documentos espalhados sobre a mesa quando o desajeitado aproximou-se dele, abordando-o:

     — Esses carros novos valem quanto?

     — Treze mil e duzentos cruzeiros. — disse o empresário displicente, sem imaginar o que aquele pobretão queria...

     — Tá caro, mas é zero... Vou levar assim mesmo... — e emendou:

     — O senhor Zé podia me providenciar três “golinho”?

     — Como? Que é que o senhor quer? Tomar café, chá? — assustou-se um dos vendedores que prestava atenção à conversa.

     — Não, quero três automóveis desses aí, dos novos... Gol é o nome deles, não é? Igual no futebol...

     — O senhor quer três carros!!?... (José não entendia... aquele coitado compraria três veículos? De uma só vez? E ele e seus funcionários o abandonaram o dia inteiro? Perderam tanto tempo com alguns fregueses que só enrolaram...)

     — É... dois pros meus filhos. São trabalhadores... e eles merecem. E, um é para mim. Não precisa dizer nada não, que já sei tudo dos gols. Fiquei do lado apreciando a falação. Aprendi o necessário. O dinheiro está aqui na mucuta. — disse o caipira exprimindo agora toda a quietude que mantivera anteriormente, enquanto escorregava a gorda sacola do ombro e dela sacava escrituras de sítios e casas misturadas a notas de um, dois, cinco, dez, cem cruzeiros em meio a umas de cinco mil. E completou:

     — Vai dar um troco. É só conferir. Se cada um custa, como escutei de vocês aqui, treze mil e duzentos; fazendo as contas, são trinta e nove e seiscentos cruzeiros. Devo ter quarenta mil ou mais um pouquinho.

     José Pimenta estava engasgado. Não sabia o que falar. Nunca fizera uma transação assim. Estava constrangido, vira o homem o dia todo. Não se dirigira a ele e ainda pensara que ele estava estragando a decoração do prédio. Mal consegue indagar:

     — Qual o seu nome para faturarmos os veículos?

     — Miquelino Guelere, ao seu dispor. É só aprontar a papelada e vou chamar os filhos para cada um dirigir o seu. Cor não interessa; o que resolve é o bichão ir pra frente...

     José vira as escrituras e percebera que Miquelino tinha posses, tenta oferecer-lhe um financiamento, a que responde:

     — Não lido com isto. Não gosto de Bancos. Dinheiro é debaixo do colchão, é dentro da mucuta e só anda de mão em mão.

     Mais tarde, na concessionária onde os trabalhadores já cumpriam horas extras, as faturas estavam prontas, os filhos do comprador presentes, os automóveis brilhavam preparados. José Pimenta não tolera ficar sem intervir:

     — Seu Miquelino, sabe que é permitido dirigir sem calçados? Comentam por aí que não poderia, mas o Código de Trânsito Brasileiro não faz nenhuma menção explícita sobre esse assunto.

     — Sei sim. — respondeu o sitiante. — Consultei a lei. Não aguento a botina, aperta meus dedos; só ando com o “pezão” à solta. Nem preocupo com isto. Nem aprendi a conduzir. O meu Gol será guiado pelo filho solteiro. E, depois o carro vai ser dele mesmo. Para todos os filhos compramos botinas quando entraram para a autoescola, por gosto, não por precisão.



 
Dedico este conto a todos aqueles que não
formam juízo desfavorável de outros por suas roupas ou
estilo de vida, sem um fundamento razoável; e, sem
perder o bom humor compreendem as diferenças.

 
“As aparências enganam”.
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 11/12/2015
Reeditado em 14/03/2016
Código do texto: T5477110
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