Aconteceu mesmo...

 

          A maior alegria de Gumercindo Gomes era ver ao seu redor a mulher e os oito filhos, todos desfrutando do ambiente salutar, dos recursos amealhados no único cartório de registros da pequena cidade, das experiências colecionadas, dos acertos e arrependimentos vividos. Marido amantíssimo de dona Maria do Carmo, alfabetizadora de quase todos os letrados dali. Pai extremoso, educador e severo com seus pequerruchos; preocupado em dar bons exemplos e em ensinar valores. Enfim, era um comum homem de família, muito trabalhador para que conseguisse sustentar tantos filhos...

          Cabeleira cheia e bem penteada, singelo bigode ladeando os lábios. Pele clara, talvez por motivo do trabalho. E, pelo mesmo motivo, uma ligeira corcunda adquirida ao curvar-se repetidamente para poder passar pela porta da saleta de arquivos. Estatura magra que a custo se equilibrava sobre pernas de cegonha. Pés e mãos gigantes. Gumercindo era alto, bem acima da média.

          O chavão “ninguém é perfeito” cabe aqui. Nas sextas feiras nosso personagem chegava a casa mais tarde. Era o dia em que fazia alguma coisa para si, não para a família. Tinha mesa e parceiros cativos no boteco da esquina. Dona Maria do Carmo devia se assegurar que nenhum dos filhos o surpreendesse bebendo cerveja e jogando conversa fora. Era um vício mínimo a que se dava direito.
Que contraste! O prosador, em português corretíssimo, como convém ao escrivão, esposo da professora, com a voz gutural e pausada, contava seus casos com uma exageração característica:


         - A cebola faz muito bem à saúde. É preciso que nos alimentemos de cebola. Lá em casa consumimos cinco quilos por refeição.

             - Em 1948, meu pai tinha um fordinho 51 que era um estouro!!

          - Encontrei domingo passado um relógio que havia perdido há dez anos. Estava dependurado em uma árvore e funcionava corretamente. Eu havia tirado o relógio do pulso para ir nadar e o colocara numa muda perto do rio. Ainda bem que o peso dele não prejudicou o crescimento da árvore.

          Em meio a uma história de quando era garoto e estava vindo a cavalo do sítio do avô para a cidade, acrescentava:

          - Que ventania! Que tempestade! Mas não me molhei, não. O Pangaré corria tanto que a chuva só lhe pegava o rabo...

          Eta! Segundo vício! Mas este não era admitido, pois se algum ouvinte retrucasse diante de suas histórias, logo teria um sermão:

          - Sou pai de família. Homem sério e dedicado ao ofício. Não aprecio brincadeiras de mau gosto. É que, às vezes, fico empolgado.
Gumercindo vinha de família grande também. Eram seis irmãos. E, curioso: era o único muito alto dentre eles. Se lhe indagavam sobre aquele porte, porque era o único dos irmãos com mais de dois metros de altura, ele tinha uma interessante explicação, talvez o maior de seus exageros.


           O pai era o farmacêutico da redondeza. Muito bem conceituado e quase sempre exercia o papel de médico - consultava, receitava, manipulava, selecionava e dispensava os medicamentos. Não havia médicos nas pequenas cidades, naquela época. Ele, Gumercindo, nascera prematuro, baixo peso e desenvolvera muito pouco até a idade escolar. A mãe vivia se queixando com o marido:

          - Esse menino vai ficar anão, não cresce.

        - Olha o nanico... Viva o nanico... __ buliam com ele os moleques.

O boticário, perito na profissão, preparou com todo cuidado uma poção para o filhote perrengue. Alertou a mulher:


     - Atenção! Este remédio é forte demais. Dê ao menino uma colherinha de café pela manhã e outra à noite antes de deitá-lo.

          A mãe ministrou a primeira dose naquele sábado à noite, conforme a orientação recebida. A segunda dose no domingo de manhã. A pobre, consternada, olhou para a colher tão miúda, mirou o garoto tão raquítico, emitiu um “ai” tão sofrido, volveu os olhos novamente para a colherinha e, acabou lançando-a para o lado. Tomou uma colher de sopa, encheu-a bem e enfiou goela abaixo do minguado filho. Pensou um pouco e... mais uma colherada e, outra!

          Os irmãos saíram para a missa das nove, a das crianças. Todos elegantes, como convinha á prole de tão distinto casal. O nosso herói vestia terninho branco de linho, camisa listrada de azul, botina marrom com meias de algodão. Se bem que as calças sobravam um pouco na cintura e sobre os pés, mal se viam as mãos debaixo das mangas da camisa e do paletó. Um manequim menor cairia bem.

          Assim Gumercindo se descrevia, completando que, na igreja lotada, ficou na vão da porta lateral para tomar uma fresca. Estava calor! Mas, já no momento da comunhão, o menino sentiu certa friagem nas pernas, nos braços e até na cintura; também percebeu, meio sem jeito, que o pessoal o encarava. Estupefato correu os olhos pelo corpo. Suas roupas estavam curtíssimas... Encolheram? Ele não tomara chuva... Ei! Então ele crescera... bastante! Voltou para casa todo desengonçado, com dificuldade para andar com as vestimentas apertadas. A mãe assustou-se! Dera-lhe a poção em exagero e o efeito foi aquele.

          Deste dia em diante cresceu e cresceu demais! Ultrapassou os irmãos e os colegas. Por isso ficou tão alto!

          - Pena que papai não patenteou o xarope. Teríamos ficado muito ricos com tanta miuçalha por este Brasil afora! - Gumercindo assim arrematava a explicação para seu porte.
 
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 05/12/2015
Reeditado em 14/03/2016
Código do texto: T5470787
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.