SAÍDA BLOQUEADA

SAÍDA BLOQUEADA - Por Olavo Nascimento

- Meia-sete-um saia da fila e apresente-se ao sargenteante da companhia.

- Pronto! Ferrou a minha saída! E tudo por causa do "Carneirinho"... Falou baixinho para os seus botões, o dono daquele número indigesto. Botões aqueles que estavam bem à mostra em sua camisa social, livre de qualquer indumentária que o tempo militar lhe obrigou a utilizar.

O Cabo Osny já esperava por aquilo e viu naquelas palavras soadas pela voz estridente do anunciante, suas esperanças de entrar naquela leva ir por água abaixo. Por conta da sua ínfima, mas fundamental graduação, Osny era um dos primeiros da fila na formação de soldados prontos para a baixa no serviço militar. E a baixa era a primeira de outras duas, que contemplava a saída mais cedo dos soldados de bom comportamento. Bom comportamento aquele que deixou de ser considerado, por conta de alterações em seu último serviço no quartel como cabo-da-guarda do xadrez.

Corria o ano de 1962, dia 23 do mês de novembro, uma sexta-feira e Osny aguardava ansioso por aquele dia que iria lhe livrar definitivamente do serviço militar. Foram dez meses e nove dias envolvido com horários e disciplina rígida em nome da hierarquia. Tempo de datilógrafo na Casa de Ordem do quartel dedilhando boletins diários de ocorrências com punições, elogios e promoções de soldados e graduados. Tempo de ordem unida debaixo de sol e chuva, de escalas de serviço de madrugada independente do dia da semana, de pernoites que impediam a volta para casa, de comidas quase intragáveis servidas pelo rancho, de aulas e treinamentos sobre armas e táticas militares, mas tempo também de se fazer novos amigos e conhecer outras pessoas do bem ou do mal como o Carneirinho.

Carneirinho era o Primeiro-Sargento Carneiro, sargenteante da Cia. de Alunos do Quartel que, apesar de detestar ser colocado no diminutivo, era chamado assim, à boca pequena, pelos subordinados ou menos graduados. Era um pequeno homem negro, magro e franzino, com cabelos em carapinhas, olhos vivos e atentos. Seu rosto afilado com um bigodinho rasteiro e bem aparado abaixo do nariz vinha sempre acompanhado de uma voz fina e irritante quando queria aparecer mais do que os outros. Era um militar detestável pelos menos graduados, por não relevar faltas ou falhas de soldados em prol da disciplina. Chegou a ficar conhecido como o "sargento da hora do pato", que era a hora em que os faltosos teriam que se justificar perante o oficial que analisava e julgava suas penas.

A "Hora do Pato" era uma alusão ao grande programa de auditório e de calouros da fase áurea da Rádio Nacional, que fez muitos candidatos a cantor saírem embaixo de vaias, mas que também revelou grandes nomes. A Hora do Pato no quartel era uma espécie de chance que o bisonho tinha para se explicar para o Comandante da Companhia dele. Convenceu, tá liberado... Não, "teje preso"! Legal, né? Coturno mal engraxado, cartão de cabelo vencido e barba mal feita era um prato cheio para o Carneirinho, que procurava erros nos soldados como se procura agulhas no palheiro. Fosse o que fosse o soldado estava perdido na mão dele. Postura em forma tem que ter imobilidade. Mexeu, "Hora do Pato". Coçou, "Hora do Pato". Espirrou, "Hora do Pato". Mosquito dentro do nariz, "Hora do Pato". Ai, ai, ai... Em frente... Porque o Carneirinho sabia muito bem que o coitado para provar inocência naquela hora, era tão difícil como lamber o seu próprio cotovelo. E foi exatamente com aquele sujeito, que Osny foi se meter na prontidão do último serviço no quartel.

Na manhã do dia anterior e sem observar as normas da caserna, Osny rendeu e liberou a guarda que estava saindo, mesmo com o monte de problemas que foram encontrados. Era o seu último serviço e não estava nem aí para o que viesse acontecer. Não quis complicar o cabo amigo de pelotão na entrega da guarda e estava muito feliz da vida por largar definitivamente a farda no dia seguinte. Mas quem estava do outro lado era o Carneirinho, sargento de dia escalado para fiscalizar, orientar e supervisionar todas as equipes de serviço no quartel naquelas vinte e quatro horas. Era o mesmo sargento cheio de recalques que odiava ser chamado de Carneirinho, por saber que aquele diminutivo era usado por muitos para apontar um homem dócil, submisso e dominado pela mulher. Não era o seu caso, mas mesmo assim, ele fazia questão de demonstrar o contrário com suas atitudes austeras e mau humor constante. Era um homem duro de engolir e prepotente por natureza.

O serviço da guarda no xadrez, como todos os outros, era composto por um sargento, um cabo e três soldados que se revezavam em tempos de duas horas por quatro de descanso. Por conta de uma jogatina a dinheiro na véspera, dezesseis soldados foram presos, levados ao xadrez e tiveram suas baixas no dia seguinte canceladas. Os presos não foram levados ao rancho para o café da manhã, a faxina não havia sido feita e um dos soldados escalados para o serviço estava na cela. Osny, pesaroso com os colegas trancafiados, não teve noção do perigo quando colocou um soldado vigiando a guarda, enviou o outro à sua companhia para solicitar substituição do elemento preso e abandonou a guarda para comprar lanches para os que estavam atrás das grades. Não deu outra!

Ao voltar da rua com garrafa cheia de café com leite e bisnagas amanteigadas, Osny levou um susto com o Carneirinho cheio de razões lhe esperando no posto, com um sorriso sarcástico e sua voz esganiçada. Ele foi rápido e rasteiro, determinando: - Cabo, diga-me qual é o seu número, que você vai ter muito que se explicar para o comandante.

- Mas eu gostaria mesmo era de me explicar para o senhor. Devolveu Osny se postando em continência para o sargento.

- Para mim nem tanto, porque não tenho dúvidas nenhuma sobre o seu abandono da guarda. O flagrante já está sendo registrado aqui por mim. Rebateu Carneirinho com arrogância.

- Mas o senhor pode prejudicar a minha baixa para amanhã. Preciso tanto voltar pra casa e para o trabalho que está me aguardando. Tenho que ajudar minha mãe com o meu emprego. Justificou-se Osny.

- Pensasse nisso antes de abandonar o quartel. Não costumo e nem vou relevar alterações de soldado. Ainda mais de um cabo que deveria saber de suas responsabilidades. Vamos deixar de conversa fiada e vamos aos fatos! Retrucou o sargento com rigidez.

- Tudo bem, sargento. O que o senhor quer saber? O que o senhor determina? Submeteu-se Osny com resignação.

- Quero saber o que está acontecendo aqui! Quero conversar com o terceiro-sargento e os soldados da guarda. E que bagunça é essa dentro do xadrez com os presos revoltados? E quem lhe deu ordens para abandonar o quartel? O que você foi fazer lá fora? Determinou Carneirinho mostrando toda a sua satisfação por colocar o cabo bem abaixo da sua posição.

E Osny começou a relatar tudo tim-tim por tim-tim: - O xadrez está cheio, sargento. São dezesseis presos mal acomodados com apenas quatro colchões. O sargento da guarda está envolvido com trabalhos em sua Companhia, mas posso mandar buscá-lo se o senhor assim desejar. Quanto aos três soldados da guarda, o primeiro está agora na sua hora, o segundo está preso aqui no xadrez e o terceiro foi enviado por mim à sargenteação para comunicar o ocorrido e obter orientação.

- Muito bem cabo, continue. Quero saber mais... Interrompeu-o o carrancudo.

E o cabo finalizou: - Os soldados presos estão revoltados porque não foram levados ao rancho para o café da manhã e eu saí do quartel sem ordem de ninguém para comprar este lanche para eles. Achei que estaria resolvendo o problema deles com a minha boa ação. Olhei apenas para esse lado sem pensar em mais nada.

- Mas que geraram consequências bem graves, você não acha? Rebateu o sargento, continuando com suas ordens: - Diga-me o número do soldado que você mandou à sargenteação, abra o xadrez com o homem da hora a postos e jogue fora esse lanche. Mande os presos retirarem os quatro colchões da cela e coloque-os no fogo aqui fora. Soldados alterados não merecem consideração nem lanchinho fora de hora.

- Se é assim sargento, então vamos lá! Mas o lanchinho não vai ser jogado fora não, porque custou o meu dinheiro. E do meu dinheiro cuido eu. Revoltou-se Osny, azedando de vez a relação com aquele ser insuportável.

- Você faça o que quiser com o seu dinheiro, mas os lanches para os presos estão proibidos. E abra logo este xadrez! Devolveu o sargento com irritação, por ter sido contestado pelo cabo.

E assim foi obedecido pelo Cabo Osny. Os quatro colchões foram incendiados, o número do soldado ausente foi informado e o lanche comprado por ele não foi servido e guardado no alojamento. O fogo ardeu rápido e labaredas subiram daqueles colchões velhos de crina, com a surpresa e admiração dos presentes. O sargento dava ares de importância no comando daquela grotesca operação e da inconcebível atitude de se desfazer de um patrimônio do exército brasileiro. Os presos voltaram para a cela sem os colchões, Carneirinho dispensou a presença do sargento da guarda e anotou o número do soldado ausente, quando o cabo ainda tentou uma última tentativa de aliviar a sua culpa: - Sargento, o soldado ausente não pode ser penalizado porque ele saiu daqui sob minhas ordens e gostaria que o senhor entendesse a minha situação e não impedisse o meu emprego lá fora. Por outro lado, o que faremos com todos esses presos sem os colchões no xadrez?

E a resposta do mal encarado foi imediata: - Tudo será resolvido por quem de direito, após a leitura do livro de ocorrências. Está tudo relatado conforme aconteceu, sem tirar uma vírgula. As consequências desses fatos lamentáveis serão mostradas para você amanhã. Aguarde e não espere alívio nenhum da minha parte.

Carneirinho foi bem claro quanto a sua decisão e Osny reagiu à sua maneira. Primeiramente, dirigiu-se ao sargento da guarda, relatou o ocorrido assumindo todas as responsabilidades pelas alterações no serviço. Depois, atendendo instruções do sargenteante da Companhia, recebeu outro soldado na guarda em substituição ao que estava preso e finalmente, aproveitando o caminho, pediu licença e adentrou na sala de trabalho do oficial de dia, anunciando: - Boa tarde tenente. Cabo Osny de serviço na guarda do xadrez se apresentando.

- Fique à vontade, cabo. O que está acontecendo? Em que posso ajudá-lo. Prontificou-se o ex-cadete e Tenente Fonseca, egresso a pouco tempo da Academia Militar das Agulhas Negras.

A forma cordial e educada demonstrada pelo jovem oficial trouxe coragem para Osny desabafar. Passou um pente fino em tudo que aconteceu, foi repreendido por ele ao concordar com certas atitudes do Sargento Carneiro, mas se irritou também quando soube da queima dos colchões ao esbravejar: - Quem deu autorização pra ele queimar os colchões? Vá buscá-lo e draga-o até aqui! Agora!

Ao caminhar com o Cabo até a sala do Oficial, Carneirinho mostrando preocupação, tentou em vão saber de Osny o motivo da sua convocação. O Cabo acompanhou-o até a porta da sala de trabalho do tenente e voltou para a sua base, que logo depois recebeu a ordem de mandar os presos buscar outros colchões na Companhia de trabalho do próprio Carneirinho. Era tudo que o cabo desejava naquela hora e Osny se vangloriou por dentro por ter dado à volta por cima naquele sargentinho metido a besta, que foi obrigado a resolver o problema de acomodação dos presos por ordem superior de um tenente com idade pra ser seu filho. Humilhação melhor do que aquela ele não esperava. E foi bem feito pra ele.

Osny passou o resto do serviço sem outros problemas, mas bastante agoniado com o que poderia lhe acontecer depois da sua queixa junto ao tenente. Carneirinho era um homem recalcado que, com certeza, não iria deixar barato nem perder a oportunidade de se vingar aumentando a carga nas alterações do serviço. E foi exatamente isso que ele fez, ao redigir o seu Livro de Ocorrências cheio de chumbo grosso contra o cabo que acabara de desafiá-lo.

A noite foi longa para Osny na supervisão da guarda, cujas preocupações do dia não o deixaram pregar o olho em nenhum momento. E foi assim, cansado fisicamente e esgotado mentalmente, que Osny entrou naquela fila de soldados a serem liberados na manhã do dia seguinte. Aquela mesma manhã que ele escutou o que não queria: "meia-sete-um" saia de forma e apresente-se ao sargenteante..."

Osny saiu de forma, voltou ao alojamento, retirou sua roupa social e se apresentou diante do sargenteante da Cia devidamente uniformizado, quando dele recebeu a ordem: - Apresente-se ao seu setor de trabalho e aguarde novas instruções, porque a sua baixa foi suspensa.

O cabo nem precisou dar a notícia do acontecido ao seu chefe imediato na Casa de Ordem (Primeiro-sargento Claudemiro), porque o Livro de Ocorrências redigido por Carneirinho já se encontrava à sua frente. Claudemiro era outra história completamente diferente da pessoa intragável do Carneirinho, apesar de se entenderem muito bem pelo bom tempo juntos no quartel. O seu chefe era um homem inteligente, sóbrio e coerente. Bom de escrita cabia a ele a redação dos boletins diários do quartel com base nas orientações do coronel-comandante quanto às punições, elogios, transferências e demais informações. Era um homem de bom coração, amigo, solidário e prestativo que sempre tratou Osny com educação e respeito. Ele até que gostava muito do rapaz, por admirar a qualidade do seu trabalho burocrático naquela C.O. E por saber da necessidade que Osny tinha daquela baixa por motivos mais do que justos, Claudemiro tentou ajudá-lo de todas as formas. Chamou o cabo num canto e falou: - Quando vi o seu nome nas alterações redigidas pelo Carneiro, levei até um susto. O que houve com você meu rapaz? Foi dar mancada logo no seu último serviço? Logo você que tem sido um soldado de bom comportamento? Abandono da guarda é falta grave, você não sabia disso?

- Sabia sim, sargento. Mas não pensei duas vezes na hora de ajudar meus colegas presos. Recebi o serviço anterior cheio de problemas.

- O coronel ainda não viu o livro, mas eu sei que ele fica muito irritado com alterações de graduados. Ele tem outros livros de ocorrências para analisar e daqui a pouco deve me chamar para determinar as punições e autorizar as publicações. Não garanto, mas vou tentar amenizar a sua pena com ele. Acho até que o Carneiro foi muito duro com você.

- Deve ter sido pela queima dos colchões que ele determinou e por eu ter dado ciência do fato ao oficial-de-dia.

- Continue o seu trabalho como nada tivesse acontecido e vamos aguardar as decisões do comandante.

Mas tarde, contemplado com a intervenção do seu chefe Claudemiro, Osny abriu um sorriso de alegria ao datilografar a sua própria punição: "Por infringir normas disciplinares no serviço, ao abandonar por alguns instantes a guarda-do-xadrez para buscar lanches fora do quartel, determino a detenção por quatro dias do Cabo Osny (número 671). Nesse período, o cabo deverá permanecer alojado nas nossas dependências, inclusive neste final de semana. A sua baixa foi suspensa no dia de hoje e adiada para a próxima terça-feira (dia 27/11/1962)."

A notícia daquela punição branda Osny não cansou de agradecer ao seu chefe Claudemiro, mas o que lhe deixou muito mais feliz e reconfortado, foi a outra decisão superior que ele começou a datilografar logo a seguir: "Por infringir normas regulamentares contra o patrimônio do exército brasileiro, ao ordenar a queima de colchões que faziam parte da guarda do xadrez, determino ao Primeiro-sargento Carneiro a reposição imediata dos bens destruídos. Ainda por conta da sua falta gravíssima, o Sargento Carneiro deverá cumprir detenção de dez dias seguidos e ininterruptos sem abandonar o quartel."

Foram esses os motivos que fizeram Osny ver uma grande leva de soldados saírem eufóricos na primeira baixa daquela sexta-feira, reservando para ele a saída solitária na terça-feira da outra semana. Mas a sua euforia teve outro gosto, ao saber que Carneirinho ainda iria ficar mais alguns dias detido por ter recebido o castigo que tanto mereceu. Osny foi definitivamente para casa naquela terça-feira, enquanto o sargento ficou roendo o seu osso. Essa história termina aqui fazendo referência ao ditado: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido."........

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POETA OLAVO
Enviado por POETA OLAVO em 23/10/2015
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