ANGÚSTIAS DE UM INOCENTE
ANGÚSTIAS DE UM INOCENTE - por Olavo Nascimento
-- VÁ ATÉ LÁ E SE VOCÊ NÃO VOLTAR DENTRO DE TRÊS HORAS, EU VOU BUSCÁ-LO. A atitude do general F. Luma trouxe a coragem que Oswaldo precisava para enfrentar aquela sindicância. Porém, antes disso, Oswaldo teve que garantir que estava falando a verdade. E o militar acreditou e confiou no rapaz quando esse disse que sim.
Eram aproximadamente 13h00min do dia 29 de março de 1968, quando Oswaldo, ao retornar do almoço para o trabalho, encontrou seu irmão Gilberto esperando-o com uma intimação para depor no DOPS às 14h30min daquele dia. E por saber da fama de austeridade e dureza que aquele Departamento de Ordem Política e Social da ditadura tratava seus investigados, Oswaldo se apavorou tão logo acabou de ler aquela ordem judicial. Mas tinha que agir rápido. Titubeou, tomou coragem, pediu licença e adentrou no gabinete do general e seu chefe naquela importante multinacional do ramo petrolífero. E contou o que aconteceu na noite do dia anterior:
-- ESTOU ANGUSTIADO GENERAL. PRECISO DA SUA AJUDA E DA SUA ORIENTAÇÃO. ONTEM EU FUI ENVOLVIDO NUMA CONFUSÃO SEM SABER O PORQUÊ. FUI ATINGIDO POR BOMBA DE EFEITO MORAL E CHEGUEI A SER ATENDIDO EM HOSPITAL.
-- COMO FOI ISSO RAPAZ? ESTAVA NO MEIO DE ESTUDANTES E SUBVERSIVOS? EU SEI MUITO BEM O QUE ACONTECEU ONTEM. Retrucou o general com cara de poucos amigos e pronto para a reprimenda.
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"Mas o que aconteceu naquele dia 28 de março de 1968?
Os estudantes do Rio de Janeiro estavam organizando uma passeata relâmpago para protestar contra a alta do preço da comida no restaurante Calabouço, que deveria acontecer no final da tarde do mesmo dia. Por volta das 18 horas, a Polícia Militar chegou ao local e dispersou os estudantes que estavam na frente do complexo. Os estudantes se abrigaram dentro do restaurante e responderam à violência policial utilizando paus e pedras. Isso fez com que os policiais recuassem e a rua ficasse deserta. Quando os policiais voltaram, tiros começaram a ser disparados do edifício da Legião Brasileira de Assistência, o que provocou pânico entre os estudantes, que fugiram.
Os policiais acreditavam que os estudantes iriam atacar a Embaixada dos Estados Unidos e acabaram por invadir o restaurante. Durante a invasão, o comandante da tropa da PM, aspirante Aloísio Raposo, atirou e matou o secundarista Edson Luís com um tiro a queima roupa no peito. Outro estudante, Benedito Frazão Dutra, chegou a ser levado ao hospital, mas também morreu.
Temendo que a PM sumisse com o corpo, os estudantes não permitiram que ele fosse levado para o Instituto Médico Legal (IML), e o carregaram em passeata diretamente para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, na Cinelândia, onde foi velado. A necrópsia foi feita no próprio local pelos médicos Nilo Ramos de Assis e Ivan Nogueira Bastos na presença do Secretário de Saúde do Estado. Seu óbito de n° 16.982 teve como declarante o estudante Mário Peixoto de Souza.
O registro de ocorrência n° 917 da 3ª Delegacia de Polícia informou que, no tiroteio ocorrido no restaurante Calabouço, outras seis pessoas ficaram feridas: Telmo Matos Henriques, Benedito Frazão Dutra (que morreu logo depois), Antônio Inácio de Paulo, Walmir Gilberto Bittencourt, Olavo de Souza Nascimento e Francisco Dias Pinto. Todos atendidos no Hospital Souza Aguiar.
No período que se estendeu do velório até a missa da Igreja da Candelária, realizada em 2 de abril, foram mobilizados protestos em todo o país. No dia do enterro do estudante Edson Luís, o féretro foi acompanhado com palavras de ordem e centenas de cartazes colados na Cinelândia com frases como: "Bala mata fome?", "Os velhos no poder, os jovens no caixão" e "Mataram um estudante. E se fosse seu filho?". Edson Luis foi enterrado ao som do Hino Nacional Brasileiro, cantado pela multidão."
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-- NÃO ESTAVA NO MEIO DE ESTUDANTES E NEM SOU SUBVERSIVO GENERAL. FUI PEGO DE SURPRESA E NEM SABIA DA MORTE DO RAPAZ. Rebateu Oswaldo à pergunta do seu superior, cheio de confiança com a sua verdade.
General: -- ENTÃO ME CONTE COMO E PORQUE VOCÊ FOI ATINGIDO, A PONTO DE PARAR EM HOSPITAL.
Oswaldo: -- BEM ANTES DE SER ADMITIDO NESTA EMPRESA, EU JÁ TRABALHAVA NAS HORAS VAGAS NUM ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. E CONTINUO FAZENDO ISSO APÓS O EXPEDIENTE DAQUI. PRECISO DESSA RENDA EXTRA PARA AJUDAR OS PREPARATIVOS E CONDIÇÕES PARA O MEU CASAMENTO. DESDE QUE UMA COISA NÃO PREJUDIQUE A OUTRA, NÃO VEJO NADA DEMAIS.
General: --TAMBÉM NÃO. E VOCÊ ESTAVA TRABALHANDO LÁ ONTEM?
Oswaldo: --SIM. COMO TODOS OS DIAS, EU SAIO DAQUI ÀS 18h00min E FICO POR LÁ NORMALMENTE ATÉ AS 23h00min. GANHO POR PRODUÇÃO SOBRE A QUANTIDADE DE FOLHAS DATILOGRAFADAS DE DIVERSOS RELATÓRIOS E PROCESSOS. E ONTEM EU SAÍ DE LÁ POR VOLTA DAS 22h30min.
General: -- O QUE ACONTECEU?
Oswaldo: --PEGUEI O ELEVADOR NO NONO ANDAR DO EDIFÍCIO LIBERDADE NA AV.13 DE MAIO, 44 E CAMINHEI PELA AV. ALMIRANTE BARROSO ATÉ A ESQUINA COM AV. RIO BRANCO, QUANDO PAREI DIANTE DO TUMULTO E CORRERIA DE VÁRIAS PESSOAS VINDO DA CINELÂNDIA EM MINHA DIREÇÃO. ERAM POLICIAIS PERSEGUINDO ESTUDANTES E AGITADORES. A PRIMEIRA BOMBA ESTOUROU PERTO DOS MEUS PÉS. FIQUEI TONTO E DESORIENTADO NO MEIO DA CONFUSÃO, ATÉ TER SIDO SEGURO PELO BRAÇO E AFASTADO DA AGLOMERAÇÃO POR UM RAPAZ COM TRAÇOS DE ESTUDANTE.
General: -- ERA ESTUDANTE OU SUBVERSIVO? VOCÊ O CONHECIA? Questionou, ainda duvidando do seu subordinado.
Oswaldo: -- CLARO QUE NÃO! NUNCA O TINHA VISTO. AO ACOMPANHAR-ME ATÉ O MEU PONTO DE ÔNIBUS NO CASTELO, FOI QUANDO TIVE A IDEIA DO ACONTECIDO. ELE ESBRAVEJAVA CONTRA A POLÍCIA E O GOVERNO, CULPANDO-OS PELA MORTE DO ESTUDANTE. NO CAMINHO REPAREI QUE ESTAVA COM ALGUNS FUROS NO MEU TERNO E PARTES DO CORPO COM PONTOS DE SANGRAMENTO. FIQUEI APAVORADO E PREOCUPADO. --O QUE FAÇO AGORA? PERGUNTEI AO RAPAZ, QUE ME ORIENTOU PEDIR ATENDIMENTO NUMA FARMÁCIA E NÃO IR AO HOSPITAL DE JEITO NENHUM.
General: -- EU SEI POR QUÊ. É QUE NO HOSPITAL IRIAM PEGAR OS SEUS DADOS PESSOAIS E VERIFICAR A SUA FICHA. ESPERTO E JÁ ESCOLADO ESSE RAPAZ.
Oswaldo: --E FOI EXATAMENTE ISSO QUE ACONTECEU. NÃO FUI ATENDIDO EM NENHUMA FARMÁCIA POR PROIBIÇÃO DA POLÍCIA E MILITARES E FUI DIRETO PARA O SOUZA AGUIAR, MESMO COM A RELUTÂNCIA DELE AO ACOMPANHAR-ME ATÉ A PORTA. PELO MENOS MOSTROU SUA SOLIDARIEDADE E AGRADECI POR ISSO. POR ESTAR COM A MINHA CONSCIÊNCIA TRANQUILA, NÃO ESCONDI NADA DO QUE ACONTECEU E PASSEI TODOS OS MEUS DADOS PESSOAIS AO RESPONDER TODAS AS PERGUNTAS, SEM SABER SE ERAM DE POLICIAIS, MILITARES, MÉDICOS OU ATÉ REPÓRTERES. HOJE O MEU NOME SAIU EM VÁRIOS JORNAIS COM VÁRIAS DECLARAÇÕES QUE EU NÃO DEI. NOTÍCIAS SENSACIONALISTAS E MENTIROSAS DE REPÓRTERES. FUI ATÉ ALMOÇAR COM A MINHA NOIVA PARA ACALMÁ-LA E DESMENTIR SOBRE OS TIROS QUE TERIA RECEBIDO SEGUNDO ALGUNS NOTICIÁRIOS.
General: --E POR CAUSA DISSO, VOCÊ ESTÁ AQUI COM ESTA INTIMAÇÃO. FORAM BEM RÁPIDOS HEIN! MAS ESTOU ACREDITANDO EM VOCÊ E VOU AJUDÁ-LO. VÁ ATÉ LÁ E SE VOCÊ NÃO VOLTAR DENTRO DE TRÊS HORAS, EU VOU BUSCÁ-LO. AQUI ESTÁ O MEU CARTÃO DE VISITAS COM TODOS OS MEUS TELEFONES. SE PRECISAR, NÃO DEIXE DE USÁ-LO.
Era o que Oswaldo queria ouvir. Ainda mais de um ex-general tão bem relacionado com personagens envolvidos naquele momento político do país. E assim foi determinado e obedecido. Oswaldo guardou a intimação no bolso, levantou-se, agradeceu ao general e saiu para a audiência com receios, mas com uma carta na manga para qualquer contratempo ou eventualidade. Antes disso, porém, teve o cuidado de deixar o endereço do seu destino com ex-militar.
Oswaldo parou diante daquele prédio com alguns órgãos da justiça, situado na Av. Nilo Peçanha no centro da cidade carioca, entrou e subiu a escadaria até o segundo andar. Apresentou-se à recepção e foi levado até a enorme sala de espera ocupada com grande número de pessoas. Eram policiais militares, repórteres, trabalhadores e estudantes envolvidos de forma direta ou não, com a morte do estudante. Os policiais mostravam-se inquietos e os repórteres andavam de um lugar para o outro em busca de novas notícias. Nesse caso Oswaldo, em represália às mentiras publicadas naquele dia, evitou qualquer tipo de declaração que pudesse complicá-lo ainda mais.
Apesar de Oswaldo ter chegado dentro do horário marcado na intimação, ele não entendeu como a seção foi encerrada sem ter sido chamado para o depoimento. Levantou-se, dirigiu-se à secretaria e pediu instruções. A secretária pegou a intimação, saiu e encaminhou o rapaz até o gabinete do desembargador responsável pelas investigações. Era um senhor engravatado, imponente, compenetrado, com ar sério e com traços claros de mais de sessenta anos. Seu rosto moreno acompanhado de cabelos grisalhos e bigode bem aparado sobressaía mais ainda atrás de um par de óculos bem acomodado na sua face.
-- SENTE-SE. Disse ele. -- CONTE-ME TUDO E NÃO ME ESCONDA NADA.
Oswaldo: -- CONTAR O QUÊ DOUTOR?
Ele: -- SOBRE O QUE ACONTECEU ONTEM NO RESTAURANTE DO CALABOUÇO ÀS SEIS HORAS DA TARDE.
Oswaldo: -- NÃO POSSO SABER DOUTOR, PORQUE NESTA HORA EU ESTAVA SAINDO DO MEU TRABALHO.
Ele: -- NÃO TENTE ENGANAR-ME. VOCÊ ESTÁ ESTUDANDO AONDE?
Oswaldo: -- DESCULPE DOUTOR. MAS NÃO SOU ESTUDANTE E POSSO COMPROVAR QUE ESTAVA TRABALHANDO NAQUELE MOMENTO.
Ele: -- ENTÃO PROVE. SE NÃO CONSEGUIR, VOU TOMAR OUTRAS PROVIDÊNCIAS.
Oswaldo pegou a sua carta na manga e apresentou-a ao magistrado. -- AQUI ESTÁ DOUTOR. TODOS OS TELEFONES DO GENERAL F. LUMA. MEU CHEFE NESSA EMPRESA PETROLÍFERA. PEÇA PRA ALGUÉM CONFIRMAR POR FAVOR.
Ele: -- VOU FAZER ISSO. MAS VOCÊ ESTÁ DISPENSADO NO MOMENTO. SE ISSO FOR VERDADE REALMENTE, CONSIDERE-SE LIVRE DESSA SITUAÇÃO.
Oswaldo levantou-se, pediu licença e partiu contente e aliviado. Na volta ao trabalho, relatou o que aconteceu ao general e ficou sabendo que ele não recebeu nenhuma ligação daquela jurisdição. Pensou, enfim, que o caso estava definitivamente encerrado para ele. No entanto...
Os dias foram passando e Oswaldo, por haver sido envolvido, acompanhava pelos jornais, o andamento do inquérito e suas decisões. E por causa dessa sua curiosidade, ele se viu surpreendido em mais dois momentos, quando seu nome apareceu em jornais informando que seria intimado debaixo de vara. Retorno da angústia para o rapaz, que só foi amenizada após novos depoimentos ao desembargador que, infelizmente, tinha deixado de confirmar com o general a sua justificativa anterior. Foi mais um sufoco que Oswaldo passou por três semanas seguidas do ocorrido.
O tempo passou com a velocidade do vento e tudo voltou à normalidade na vida pessoal e profissional de Oswaldo. O general, com a sua hierarquia e disciplina trazida dos quarteis, mostrava simpatia pelo rapaz e amizade com seus conselhos importantes e experientes de pessoa mais vivida. Era um homem moreno acima dos sessenta e cinco anos, que marcava presença pela sua postura séria e serena. Seu rosto ovalado apresentava dentes largos, óculos de altos graus e uma testa bastante calva acima da cabeça. Era, enfim, um homem interessante.
Três a quatro meses depois do ocorrido, Oswaldo chegou ao trabalho no horário normal da manhã e a porta do general estava fechada. Sentou-se, preparou a sua mesa e começou a agir o seu expediente, quando a porta do gabinete se abriu e o seu chefe surgiu acompanhado de um rapaz, dizendo:
-- OSWALDO QUERO APRESENTÁ-LO AO MEU FILHO JOÃO MIGUEL. VEIO ATÉ AQUI PEGAR ALGUMAS INFORMAÇÕES PARA UM TRABALHO DE GRUPO NA FACULDADE.
Oswaldo e o rapaz se entreolharam, umedeceram e disfarçaram o incômodo do momento. Numa piscada de olho imperceptível pelo pai, João Miguel conseguiu transmitir o recado do momento para Oswaldo.
-- VOCÊS SE CONHECEM? Indagou o general.
-- NÃO. ESTAMOS NOS CONHECENDO AGORA. Repetiram os dois rapazes quase ao mesmo tempo, seguido de um aperto de mão.
João Miguel se despediu, saiu e o general nunca soube que "O ESTUDANTE QUE ACOMPANHOU OSWALDO ATÉ O HOSPITAL NAQUELE DIA QUE FOI ATINGIDO PELA BOMBA, ERA EXATAMENTE O SEU FILHO". Que decepção seria pra ele, não é mesmo?
N.A.: 1. O Edifício Liberdade mencionado no texto, é o mesmo que desabou em 25 de janeiro de 2012, matando 17 pessoas;
2. O meu nome consta no adendo "Mas o que aconteceu naquele dia 28 de março de 1968?", como uma das pessoas feridas que foi atendida no Hospital Souza Aguiar.