Like, um cão herói especial.

Eu me chamo Valmir. Sou carpinteiro aposentado. Adoro fazer artesanato e moro no morro do Aricanga em um local tão ermo e desconhecido que até eu não conhecia até vir morar aqui. Cansado da civilização eu construí essa tapera e me mudei pra cá assim que aposentei. Quando resolvi sair do barulho do mundo e vir morar aqui havia decidido que não mais queria voltar. Aqui plantei sementes e colhendo seus frutos tinha alimentos suficientes pra me manter. Trouxe comigo meu cãozinho o Like, uma cabra e um cabrito, uma bácua prestes a parir alguns leitões, um papagaio tagarela, algumas galinhas e apenas um frango. Trouxe milho em sacos o bastante para ficar um bom tempo sem precisar colher. Mobiliei o casebre com móveis de madeira tosca, feitos por mim. Ficaram lindos. Sou fera nisso. Minhas ferramentas de artesanato e deixei um amigo em minha casa pra fazer compras pra mim. Faço meus artesanatos e levo pra ele lá em baixo na cidade. Ele vende e com o dinheiro compra mantimentos pra mim e eu busco quando levo outra leva de artesanatos.

O monte Negro fazia jus a seu nome pois no seu cume estava uma coleira de nuvens e o contraste do branco das nuvens e da escuridão do morro, tornava-o mais negro do que realmente era. A noite estava chegando ao fim e logo viria o sol. Sentado a varanda do casebre de madeira roliça que eu fiz com minhas próprias mãos de carpinteiro, eu observava o dia chegar. De onde eu estava, ou seja do cume do Morro do Aricanga, eu podia ver quase tudo a volta do morro. Lá embaixo, os carros pareciam pequenas formigas se locomovendo pela BR 101. A própria BR mais parecia uma fita a se desenrolar, pela arte de algum bichano irrequieto.

Fiz amizade com um dos leitõezinhos que nasceu muito fraquinho e a porca não quis amamentar pois ele era o nono porquinho e não tinha teta pra ele. Dei-lhe o nome de bolinha pois ele ficou muito gordinho.

Bolinha sempre foi minha alegria nesse morrão. O louro não fala muito aqui. Só chama o Bolinha e Parece que sente falta do burburinho da civilização. O Like fica sempre quieto e não faz nenhuma graça, mas o tal de Bolinha é muito bagunceiro e me faz rir o tempo inteiro.

Eu planejara entrar na mata e pegar um pedaço de caixeta para fazer umas artes cuja inspiração me ocorrera de última hora. Esta árvore é nativa do nordeste Brasileiro mas gosta de terrenos alagadiços e por esta razão deve ter nascido aqui próximo a cachoeira. Não me perguntem como ela veio parar aqui mas pretendo fazer um manejo sustentável dela. Ela rebrota sempre que é cortada. Eu a derrubei a mãe árvore na semana passada, deixando alguns filhotes e estou cortando aos poucos visto que não teria como carregar o tronco inteiro. Meu serrote não é muito potente mas cortando devagar eu consigo levar um bom pedaço de cada vez.

A caminhada era longa e por isso apenas amanheceu sai para o local. Sem lanterna esperei por mais luz para entrar na mata. Like me seguiu e eu tentei impedir de todo o jeito. Amarrei mas ele se soltou. Já havia andado um bom pedaço quando tive que voltar pra prendê-lo outra vez. Ele chorou muito amarrado a árvore de Jequitibá rosa que tem próximo de casa e pude sair sem que o Bolinha me seguisse também. Parti para a mata e fiquei pensando o que deu naquele cão hoje. Ele geralmente não me segue muito. E quando eu mando ele ficar, me obedece. E hoje que eu queria que ele vigiasse a casa ele apronta essa.

A mata estava especialmente cheirosa hoje. As murtas estão maduras e as flores de ipê e orquídeas estão cheirosas demais. Dentro da mata está mais escuro. Parece que vai chover pois o sol está com preguiça de acordar.

A picada que eu fiz na mata está querendo fechar. As veredas estreitas mal dão pra eu passar. Tenho que ir cortando os cipós e os arbustos que me atrapalham. Ao me aproximar da cachoeira o barulho ensurdecedor não me deixa ouvir nada e por isso não notei nada estranho quando peguei o cipó pra atravessar para o outro lado. Like apareceu de surpresa e no outro lado da cachoeira e pulou em cima de alguma coisa bem na minha frente.

Era uma cobra Jararaca e Like se enganchou nela bem no local em que eu soltaria o cipó. Lutou bravamente com a cobra até que ela parou de tentar mordê-lo e caiu sem forças toda ensanguentada. Eu saltei um pouco mais pra frente deles e tentei impedir que a cobra o mordesse mas, tive medo de machucar o Like. Quando a luta acabou me aproximei e vi que ele estava com a lateral mordida. Foi caindo e deitando no chão. Peguei a faca e raspei o pelo dele e segurando o bichinho com cuidado fiz um pequeno talho em cima da mordida.

Chupei o sangue dele, cuspindo-o logo depois. Fiz essa operação por várias vezes seguidas na esperança de salvar meu amiguinho. Ainda bem que não tenho dentes podres porque do contrário eu poderia ter morrido.

Lavei minha boca na cachoeira, peguei Like no colo e o levei pra casa. Tive de dar a volta na lagoa, pois com ele no colo não dava pra ir de cipó. A caminhada era longa, mas a fiz quase correndo. Em casa fiz também algumas mesinhas que eu conhecia e fiquei pensando em levar-lo lá embaixo para dar a ele uma dose de soro antiofídico que eu não tinha trazido comigo e estava guardada na geladeira. Mas não foi preciso. Like voltou do desmaio e demonstrou que estava bem, ou quase. Dei-lhe um pouco de leite de cabra e só então descansei.

Agora entendi porque ele queria tanto ir comigo. Parece que pressentiu a presença do bicho. Como pode? Não sei, mas sei que ele salvou a minha vida. Ainda bem que eu nunca fui bom em amarrações. De agora em diante nunca mais entro na mata sem meu amiguinho Like.

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 23/09/2015
Reeditado em 21/12/2015
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