O VELHO MOCA

O VELHO MOCA

Moises Gáspio dos Santos. Esse era o nome do Velho Moca de Guerra. Rapaz alto, magro, caneludo, barbicha à lá Bim Laden, olhos negros penetrantes, boca fina de bode novo, poucos dentes o que facilitava assoviar melhor suas melodias. Não era feio, nem bonito, mas tinha uma beleza interior que se manifestava somente aos olhos daqueles que veem com a alma.

Não gostava de trabalhar, nem um pingo!

Quando perguntado pelos chatos: Porquê não trabalhava?, “ Aqueles chatos que querem sempre mudar a vida dos outros, cheios de experiências e repletos de razão, que somente visam o acúmulo de riquezas materiais e, que com certeza desconhecem que o acúmulo desses bens, sem a caridade aos mais necessitados, constitui antes de uma bênção, fardo pesadíssimo na longa caminhada pela estrada do reparo e da evolução da alma até o Mestre Supremo. Respondia Moisés: Não trabalho, porque: Primeiro tenho que acordar bem cedo; . Como acordar cedo se durmo já amanhecendo o dia? Depois tenho de comprar sapatos, meias, roupas e me alimentar bem para aguentar o tranco. Com todas essas exigências o que vou ganhar fica tudo nas despesas, assim sendo fico como estou: Quebrando um galho aqui, outro ali, fazendo uns servicinhos, mas servicinhos poucos pra não estressar....

E um desses servicinhos foi quando se prontificou a fazer uns reparos no calçadão de Dona Alzira na pracinha da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Mas aquele serviço tinha que ser feito, o amigo Jorge não podia ficar humilhado. O fusquinha doido, chilado, isso mesmo: O FUSCA, pois nossa turma não chila, entrou calçada a dentro da casa da respeitável senhora. Foi um comentário danado: Bancário bêbado quase derruba a casa dos NUNES. Quem foi? Foi Jorjão. Tava mais quem?, e bla,bla,bla, que não acabava mais. Essa situação não podia continuar, foi aí que Moca juntamente com o ajudante de pedreiro Dudu Foguete, comedor de Gavião penacho. Servicinho duro, duro mesmo, ainda mais que o Moca já estava com as mãos finas de tanto não trabalhar, já de há muito não dava um prego numa barra de sabão. Aquela altura já não sabia onde se metera a colher de pedreiro, o prumo a régua e demais apetrechos...Com extrema dificuldade arrumou tudo, fechou a cara e fez os serviços que durou nada menos que meses.

Agora sim, comemorações mil, pela bela obra de engenharia. Três dias de farra das pesadas, farra maior que a obra, quase quebra Jorjão, sua conta foi ao vermelho, mas foi bom, foi bom demais....

Moca quase não trabalhava, não precisava e não tinha tempo. Os amigos de farra lhe ofereciam de tudo e suas necessidades eram de uma merréia, pouquinhas, uma pinguinha, um tira-gostinho, e umas musiquinhas apaixonadas, só isso...Eram-lhe gratos pela presença, alegre e despretensiosa, pelos favores dos recados às namoradas com a maior confidencialidade e respeito.

Ria, pulava, brincava, assoviava, abraçava e beijava quando a ocasião assim exigia, porém vendo o parceiro triste, queixoso, nauseabundo, por exemplo com saudades da família ou da namorada, ou sem nada disso, apenas com aquele sentimento de vazio, de angústia, aquela vontade de chorar sem saber de quê, aquela vontade que vem de dentro e acaba condensando em lágrimas, num choro doido sem explicação. Nessa hora, Moca sabia ser todo ouvidos e atenção para o amigo desafortunado. Não dizia nada, prestava atenção calado, atenção de papagaio novo quando está querendo aprender a falar, e chorava fazendo couro com o amigo, lembrava uma música melosa, tristonha e sentimental e assobiava acompanhado por uma caixa de fósforo ”beija flor” que não ficava nada devendo para um pandeiro.

Esse era nosso velho Moca...

E a calçada? Quanto ficou o conserto? Perguntou Jorge. Moca bebendo uma pinguinha, e olhado de banda tal jumento treiteiro, fingia não ter ouvido nada.

Jorge com insistência pergunta novamente, e com a elegância de um inglês e desprendimento de um monge, responde Moca: Não custa nada, nadica de nada, fiz por amizade, para que não falassem mal do amigo. Melhor tivesse pago, ficou mais caro que construir a casa inteira, pois Moca sempre relembrava o feito quando reuníamos , e tome-lhe pinga e tira-gostos por conta....

Assim, dessa maneira, depositava Moca, na conta da admiração e reconhecimento parcela suficiente para beber, comer e dormir prazerosamente , um bom tempo às custas dos seletos amigos...

Sempre viveu assim, indiferente aos comentários maldosos dos que o queriam diferente. Favavam: Nem os dentes da frente tem, vive só com os bancários, com Newton Batista, com Luli, só com gente boa, é um orgulhoso!!!. Sim era assim mesmo, não se dava com os de sua iguala. Dizia sempre, não deixe Erci em nossa rodada, Não entende de músicas, não sabe interpretar, Não tem sentimentos, não tem nenhuma paixão para curtir, é um bostoró, acrescentava...

Quando da velha vitrola, estávamos a ouvir um long-play de Nelson Gonçalves, por exemplo a música “A FLOR DO MEU BAIRRO”, Moca ficava em silêncio profundo, ninguém podia conversar, concentração máxima, e depois a interpretação recheada de sentimentos profundos, geralmente com nuances, adendos e adornos eméritos que o autor jamais sonhara ao compor. Mas Erci e outros! Esses não, não sabiam sentir as músicas, como que podiam fazer parte de nossa turma?, Nunca, jamais...Por isso me chamam de orgulhoso, sou mesmo, eu entendo, e sou assim...

Veja o Tuchim, companheiro entendido, sentimental,. Lembra quando Dé do Bar colocou aquela música de Tião Carreiro e Pardinho? Quase chorou, eu raparei, também pudera, já morou no Rio de Janeiro, esse sim entende de músicas, pode fazer parte de nossa rodada, pé de chinelo, não...

Moisés não tinha sossego, era muito ocupado. Quando um funcionário do Banco ia gozar suas férias , lá estava ele de malas prontas para a viagem, para Minas, para o Rio de Janeiro, Bahia e além...sem um tostão furado nos bolsos, mas cheio de alegria e tristeza de acordo exigia o amigo. Humilde, solícito, respeitoso e educado, bom de copo, de pouco comer e com o corpo leve e fino, que não exigia espaço considerável na hora de dormir, Moca não era fardo, era antes de tudo uma pluma colorida, na bagagem....

Ia Moca, deixava um vazio imenso nos que ficavam, uma inveja mortal nos seus iguais. No retorno, comemorações efusivas, abraços de quebrar costelas, e o melhor: Os causos compridíssimos sobre a viagem, repletos de pausas para uma boa golada, era mais um bom motivo para a farra.

Os causos de Moca eram tão longos, que certa vez em viagem para Barreiras, começou na entrada do jeep e chegando a cidade de destino o causo ainda não tinha chegado ao fim, sugeri-lhe , então, continuar quando de nosso retorno , três dias depois...

Várias vezes queixava-se de sua agenda, sempre cheia, repleta de festejos e comemorações, era festa de fogueira, folia, aniversários, carnaval, festa do Senhor do Bom-Fim, festa de Setembro,. Festas mil, comemorava-se de tudo, da lua cheia, da nova, chuva, falta de chuva, despedida, chegada, sempre havia um motivo. Já sentindo o cansaço do velho fígado, procurava às vezes afastar-se das farras, dizia: Esta semana , não bebo , nem que a vaca tussa! Vou descansar...mas quando estava em casa, escondido, já há uns dois dias sem beber, e sem dormir , também, porque quando parava não podia fechar os olhos que lá vinham os capetinhas, todos coloridos a lhe perturbar o sono, fazendo algazarras e de vez em quando alumiando suas vistas com relâmpagos do mês de outubro . Espantava-se, perdia o sono completamente, descia da cama e ia a moringa beber uma água fria da cachoeira. Contava, não dormi nem uma faúla, nem um pingo, saía então para a rua, para se distrair, despistar dos capetinhas da noite, esquivando-se dos amigos, das rodadas, pois não queria saber de farras ou festanças, mas já na primeira esquina encontrou com o velho amigo Mário Beltrão, exímio costureiro de calça Boca-de – sino , que já foi dando-lhe as novas: Moca! Hoje é aniversário do Baiano, seu amigão, Divina já matou os frangos, enfeitou até a porta da república com papéis coloridos e flores, ele está fiscalizando, é surpresa, chega hoje, Capitão Augusto já matou o bode, tá dependurado no pé de manga, você não pode perder!!!

E lá vai Moca para o aniversário, resguardo quebrado, e cachaça azangando o fígado, é uma PIPOCA MESMO, dizia Moca, meio triste, mais de meio satisfeito...

Então era assim, não havia nem um dia sem pretexto para a bebedeira. Fingindo-se irritado com o assédio Moca repetia: É o destino mesmo, não tem jeito, só se eu andar SUBTERRÂNEO, mas não sou tatu, hahahaha,,,

Na realidade Moca era muito solicitado, muito querido. De papo agradável, não falava em Banco, nem de fazendas, criação de gado, de imposto de renda, de taxa de água, de luz, de inflação e muito menos de política, assuntos recorrentes nos encontros dos chatos...

Certo dia um colega do banco, também músico, pessoa de bom coração e boa conduta, foi transferiro para Volta Redonda RJ, seu nome Felipe W. de Camargo. Como gostava muito de Moisés, e querendo sua companhia naquelas plagas distantes , tentava levar Moca consigo, mas com qual pretexto? O que deveria persuadi-lo?. Era muito difícil, Moca tinha aqui tudo que precisava, comida, bebida, morada, amigos, tudo, tudo mesmo. E namorada, não , esta não tinha e não queria ter...só se apaixonara uma vez, uma única vez, por Balbina, seu único e grande amor. Foi-se embora, mandada pelos patrões que via no namora pouco futuro e muito perigo...Até há pouco tempo ainda se queixava do ônibus pescocinho que carregou para Goiânia sua querida. Ele escondido na capoeira, perto de cemitério, para que ninguém visse sua dor, e o danado do ônibus, parecendo querer pirraçar, saiu lento e debochado fazendo Hau, hau, hauuu, até sumir de vistas. Até hoje quando escuto um ônibus com esta latomia toda, me vem a lembrança daquele dia, aí não tem jeito, vou no bar e bebo umas três dardadas para esquecer...Então, o que atrairia Moca para essa viagem com Felipe?- Bolamos, após muito matutar, um emprego, seguro que lhe desse condições de uma vida melhor na velhice, sim, seria o ideal; mas Moca não gosta de trabalhar, certo, mas esse emprego é especial, pois não via ter hora de chegada nem saída, chega e sai a hora que quiser, um emprego democrático, sem exigências de roupas novas e engomadas, qualquer sapato ou mesmo de chinelas, sem patrão, sem nenhuma chateação. Mas que emprego danado de bom é esse? Perguntou Moca. Felipe explicou, na região tem muitos alambiques para fabricação de cachaça. O seu emprego vai ser de PROVADOR OFICIAL DE PINGA, só isso, . Como é profundo conhecedor de qual pinga é melhor ou pior, vai sair experimentando as cachaças de uns cento e cinquenta alambiques todos os dias e ganhar uma nota preta!!!- Topo! Foi-se Moca, ficamos tristes...

Vinte e poucos dias depois, para a alegria geral da turma, eis que chega Moca, contador oficial de causos compridos e pegador profissional de galinhas no dedo como se fosse papagaios.

O que que aconteceu, Moca? Porquê voltou tão cedo?- Não lhe conto, e contando disse o seguinte: Um dia quando saí dos serviços, fui até um barzinho e pedi uma pinga. Estava com muitas saudades de minha terra e dos meus amigos,. Tinha somente um mil réis nos bolsos, tinha que beber pouco, porém como a saudade apertou demais e a garçonete colocou uma música de Altemar Dutra “sentimental demais”, bebi mais do que devia e na hora do pagamento fiquei nervoso , pensado da vergonha do dinheiro não dar. Pedi a conta e a mocinha me apresentou uma bagatela de quinhentos réis, micharia, né? Só isso, perguntei- Sim cidadão , uma pinga aqui é somente dez centavos, respondeu ela. Paguei a pinga, fui na rodoviária, peguei o primeiro ônibus e vim embora. Sabe, eu matutei: Com pinga barata desse jeito, ambiente luxuoso , garçonete bonita e educada e músicas sentimentais, eu não vou durar muito, pernas pra que te quero...Foi aquela gargalhada, caímos na farra e comemoramos efusivamente o retorno do Moca...

Não gostava de contrariar ninguém, sempre concordava com os teimosos e fanáticos, quando não concordava, calava-se, não discutia, discutir pra quê? Não ia mudar o mundo nem os cabeças duras repletas de ideias mais antigas que o rascunho da bíblia, ia criar sim, uma inimizade, não ia convencer ninguém, ia ficar enraivecido e daí pegar uma úlcera, adoecer e babau!!!, dizia ele sabiamente...

Certa vez, conversava ele com uma senhora que ele não topava muito, pois a considerava fingida, dissimulada, falsa, quando cheguei por trás sem ser notado, . Ela querendo um favor, se desmanchava em elogios a Moca, era Moca pra lá, Moca pra cá, rapaz bom, competente, trabalhador, etc e tal. E moca acompanhava o refrão, na mesma entoação: A senhora é excelente pessoa, honesta, sincera, . Olhe bem! Honesta! Sincera!!! Uma fingida daquelas? Eu podia acreditar no que estava escutando. Depois dessa prosa, chamei Moca a atenção e com tom de censura perguntei porquê procedera assim, de maneira vulgar e desonesta, pois eu sabia que ele não gostava daquela mulher. Ele bem calmo e compenetrado respondeu-me: Não é bem assim como você tá pensando não , amigo, aquilo foi somente uma conversa do “FINGIMENTO CONTRA FALCIDADE”

Infelizmente nos deixou há algum tempo. Foi fazer parte da ACADEMIA CELESTIAL DOS PUROS E SIMPES. Legou-nos os ensinamentos do desprendimento dos bens terrenos, mostrou-nos o caminho do companheirismo desinteressado,

Deve estar agora a assoviar canções etéreas , sentado com sua turma, porque muitos de nós já se foram, bebendo fluídos angélicos, fingindo estar morto, mas sobretudo,... MUITO SENTIMENTAL !!!

Laerte Rocha
Enviado por Laerte Rocha em 19/09/2015
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