Caminho errado
Sentada naquela cadeira desconfortável, durante uma tarde quente de agosto, Ana Lúcia pensou em sua rotina enquanto bebia uma xícara de café. Todo dia era a mesma coisa, saia de casa bem cedinho, o sol ainda estava preguiçoso, caminhava vários quarteirões até a parada onde pegava o primeiro ônibus, no percurso via mendigos ainda dormindo no chão e a velha senhora na janela do prédio azul sempre admirando o horizonte como se esperasse alguém voltar. Ao chegar à parada, Ana agarrava sua bolsa com toda a força, como se carregasse um segredo, tudo devido à presença de indivíduos suspeitos que estavam sempre lá e que por sorte nunca se aproximaram dela, mas, cuidado era sempre bom.
Subia no primeiro ônibus e sempre disputava um lugar, as vezes conseguia ir sentada e as vezes não, tudo era questão de sorte. Quando conseguia, gostava de observar as pessoas ao seu redor, suas expressões e de certa forma, imaginar para onde estavam indo de acordo com sua vestimenta ou atitude... Havia um garoto alto, moreno, de cabelos espetados, olhar sempre alerta e desconfiado e uma mochila enorme e que atrapalhava a passagem de todos pelo minúsculo corredor do ônibus, esse rapaz poderia ser um estudante, outra personagem quase sempre frequente era uma mulher baixa, cabelos pretos e presos, saia comprida, bolsa artesanal e olhar vago, para Ana esta mulher seria uma doméstica evangélica... Havia muitos outros, mas a parada de Ana chegava antes que ela pudesse analisar todos.
Ao descer, o sol já estava escaldante e diversas pessoas se espremiam na parada, estudantes rindo alto, engravatados ao celular, mulheres com saltos absurdamente altos, mulheres de chinelas segurando crianças bocejando, homens carregando embrulhos enormes sob a cabeça e etc. Ana poderia usar cada uma daquelas pessoas como molde para um personagem, não lhe faltavam ideias, só faltava tempo. O ônibus então chegava e como era um dos mais esperados, todos corriam em busca de um bom lugar, como Ana ainda insistia em ir de salto para impressionar o chefe pela elegância, não conseguia correr e sempre acabava em pé, espremida de cara com a barra de ferro vertical do ônibus, pois como era baixinha não conseguia segurar a barra horizontal de cima e claro que para completar estava quase sempre entre dois homens estupidamente altos.
Aquele ônibus passava aproximadamente 20 minutos na parada esperando todos entrarem, ao final havia cerca de 90 pessoas socadas com sensação física de 350. Se Ana levantasse a perna, por algum motivo, não conseguiria baixá-la até descer. De vez em quando ainda surgiam uns engraçadinhos que se achavam no direito de se “esfregar”, Ana sabendo que a segurança, bem como a impunidade em nosso país é como é não se fazia de vítima e falava bem alto “Ta apertado, mas não precisa me encoxar!” e isso funcionava com a maioria dos espertinhos. E apesar do incomodo, Ana conseguia imaginar que aquilo daria uma ótima história sobre situações constrangedoras em coletivos.
Ao chegar ao trabalho, Ana cumprimentava os colegas, que na verdade de colegas não tinham nada! Quando respondiam ao seu cumprimento via-se falsidade escorrendo pelo olhar e bastava Ana se virar para que sua roupa, cabelo, maquiagem, dentes, voz e sabe Deus mais o que fosse criticado. Dirigia-se então à sua sala, onde havia blocos infinitos de papéis em cima de sua mesa, folhas de pagamento, fichas de novos funcionários, admissão, demissão, INSS, PIS e etc. O comum de todo escritório de contabilidade... Os telefones não paravam de tocar, cada vez mais papéis chegavam, o trabalho nunca tinha fim e quando Ana era chamada à sala do chefe recebia rudes sermões ou mais uma empresa para tomar conta.
Naquele dia não fora diferente, enquanto os papeis se acumulavam sob sua mesa, Ana bebia aquele café, olhava pela janela e pensava que lá fora era onde tudo estava acontecendo naquele exato momento, onde as pessoas estavam vivendo, onde cada centímetro traria uma experiência nova e revigorante... Lá fora suas ideias fervilhariam, cada casal dividindo um hot dog no parque, seria transformado em um romance fictício, cada animal passeando com o dono poderia se tornar um novo melhor amigo a emocionar leitores em uma história dramática e cada táxi parado próximo a um cemitério, poderia estar levando um espírito de uma jovem assassinada direto para a imaginação de um leitor ansioso por um bom conto de terror. Isso tudo foi mais que suficiente para que Ana se convencesse de que estava no caminho errado.
Respirou fundo, bebeu o ultimo gole de café e foi até a sala do chefe, que a recebeu com a usual grosseria, questionando-a do porque não estava trabalhando, e ela simplesmente disse: “eu me demito!”. Seu chefe ficou espantado com sua atitude, mas sem querer demonstrar isso, exclamou: “Tem certeza? Consigo outra secretária dois minutos!” e Ana respondeu: “Não sou secretária! Sou escritora!” e foi a primeira vez que dissera isso em voz alta.
Semanas depois, Ana conseguiu um emprego de meio expediente em uma biblioteca perto de sua casa, onde ficou cercada de preciosas escritas durante a manhã e com a tarde livre para observar o mundo vibrante ao seu redor e produzir quantas fábulas fosse capaz de imaginar por dia.
Durante uma manhã tranquila, em seu novo emprego na biblioteca, Ana lia um livro e notou um trecho interessante que dizia: “a felicidade está onde você está”, no entanto ela achou que apesar de bonita, a frase estava incompleta e antes de atender o último visitante naquele dia, Ana conseguiu descobrir o que faltava para que a frase fosse perfeita... E sua citação acabou ficando assim: “A felicidade está onde você está, contanto que você esteja de corpo e alma nesse lugar”.