NEILOR E CACOETE

Eram dois irmãos!

Fisionomia bem diferente, idades próximas, jeito tímido, sorriso aberto.

Assemelhavam-se, principalmente, nas maneiras simplórias e cordatas.

Cresceram em cidade grande do interior paulista, aproveitando bem a adolescência, pescando, caçando e aprontando muitas artes nas terras que cercavam o morro do curtume, onde ainda se podiam ver, na época, ruidosas seriemas. Naquele bucólico recanto viveram aventuras felizes. Eram, porém, curtos de raciocínio e avessos ao estudo, abandonando a escola em tenra idade, antes do término do primeiro grau. Quando crianças ou adolescentes, as diabruras e a falta de discernimento que lhes caracterizava as atitudes, eram vistas com simpatia, mas à medida que se tornavam adultos, o que antes soava bonitinho, se tornava, gradativamente, insólito e patético.

Recordar episódios protagonizados por esses dois sempre me fez rir, ainda que determinadas situações tenham sido constrangedoras ou problemáticas. Mas que seja o leitor, através deste relato, convidado a um tour nostálgico, onde a pena relembra um pouco do que essa dupla aprontou em tempos idos.

Quando criança, Cacoete adorava bolinhas de gude, mas não era hábil no jogo e sempre perdia. Uma vez, sem dinheiro para comprar mais bolas, resolveu pegar as esferas de aço dos rolamentos que o pai, mecânico de uma empresa, montava em casa. Ao aparecer com aquelas bolas pesadas e bem reluzentes, fez sucesso, mas em pouco tempo perdeu todas no jogo. Seu pai, ao perceber a falta do material, descobriu logo o autor do prejuízo e determinou que ele passaria a comer só feijão, até que devolvesse o que pegou. Ocorre que o rapaz detestava feijão, e quando o comia, não parava de soltar puns bem fedidos. Após engolir alguns pratos com dificuldade e determinado a recuperar o que perdera no jogo, foi até a casa de seus amigos e pediu as bolas de volta. Como se negassem a devolver, ficou plantado na sala de cada um, soltando seus gases fedorentos, até a família obrigá-los a entregá-las, sob pena de expulsar todos das casas.

Neilor, mais novo e apatetado, tinha sono pesado, e quando os amigos descobriram, resolveram aprontar, só não viram que a possibilidade da peraltice provocar um desastre era grande, sendo o garoto como era, e... aconteceu.

Uma menina que morava ali perto, chamada Maria Quitéria, formosa de corpo e tão desprovida de intelecto quanto nosso herói, tinha como pai um evangélico ortodoxo, que a educava para ser pastora. Ginja (seu apelido), é claro, não compartilhava das expectativas paternas, mas mantinha postura firme, e não se deixava seduzir por ninguém. Certa noite, a turma se reuniu numa casa em construção, para cantar e tocar violão. Deram de beber aos dois (ela e ele), e não demorou em que caíssem, ambos, num sono profundo. Deitaram-nos juntos num papelão, e os cobriram com sacos de pano. Logo os acordaram aos berros, dizendo que não agüentavam mais ouvir gemidos. Que parassem com a sem-vergonhice.

Eles abriram os olhos, se olharam longamente, levantaram em silêncio, deram as mãos e saíram. No dia seguinte, a turma ficou sabendo que Neilor fora até a casa da menina, dissera ao pai dela que a havia engravidado e se dispôs ao casamento, para reparar o ato.

Não adiantou dizer que tudo fora uma brincadeira.

Casaram-se em um mês e se separaram em um ano. Não tiveram filhos.

Cacoete era virulentamente homofóbico.

Não era agressivo, mas evitava até ficar perto de quem considerava efeminado.

Ao voltar de um baile em cidade vizinha, contou aos amigos, com euforia nunca vista antes, que conseguira transar com menina linda, logo de cara (duas coisas inéditas para ele: transar no primeiro encontro, e com uma menina linda). Como ninguém acreditou, disse poder provar, ao revelar fotos que tirara com ela (naquele tempo ainda era preciso revelar as fotos). Enquanto não as tinha, contava como tinha sido bom, embora ela estivesse gripada (por esse motivo, a voz rouca e grave) e menstruada (o sexo tinha sido, pois, alternativo). Quando um dos presentes começou a achar a coisa esquisita, ele se irritou, dizendo sentirem inveja, pois estivera com uma garota alta (aliás, mais alta que ele) e vistosa (tão vistosa, que seu ombro competia com o de Cacoete). Diante de mais esses detalhes, todos duvidaram da feminilidade da “gatinha” e caçoaram do amigo, que furioso, só retornou com as fotos na mão, após dois dias.

Ao observá-las, alguém comentou que a menina tinha gogó.

Cacoete olhou bem, baixou a cabeça e nunca mais tocou no assunto.

Neilor tentou trabalhar em escritório como contínuo, tendo como principal atividade ir aos bancos, repartições e empresas. Durante os dois primeiros dias de trabalho tinha feito menos da metade do serviço que lhe fora confiado. Descontente, seu patrão o chamou e disse que não entendia porque ele não conseguira executar todo o trabalho. Respondeu que se perdera e não conseguira encontrar os bancos. O homem arregalou os olhos e lhe disse que todas as agências bancárias da cidade ficavam na mesma rua, aliás, a rua principal, chamada Sete de Setembro.

O rapaz olhava para seu chefe e nada dizia.

- Você sabe que a Sete de Setembro é a rua central da cidade, Neilor?

- Não senhor!

- Você nasceu e viveu sempre aqui?

- Sim senhor!

O homem, intrigado, coçou a cabeça e pegou o cadastro do funcionário.

- Você sabe onde fica a rua João Poena Neves?

- Dessa eu já ouvi falar. Deixa ver se me lembro!

Alguns arrastados minutos de silêncio depois, sem obter uma resposta, o patrão lhe entregou a ficha de cadastro e o dispensou no mesmo instante, pedindo que não voltasse. Na ficha constava o endereço de sua casa: Rua João Poena Neves, 01. A casa de Neilor era a primeira da rua. Ali nascera e crescera, mas não conseguia se localizar, devidamente, pois trabalhava de maneira misteriosa, sua pitoresca mente.

Na última vez em que tive notícia a respeito desses singulares personagens, estavam, ambos, dedicados a conquistar a amizade de um casal de argentinos que estava residindo, temporariamente, nas proximidades de sua casa, porque tencionavam conseguir que os gringos os levassem para Nova York, que em seus delírios, deveria se situar em algum lugar, entre Buenos Aires e Foz do Iguaçu.

Não sei dizer se tiveram êxito em seus propósitos.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 07/07/2015
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