"FOR MAN"
Gilda atravessou meu quintal tão em silencio que me assustou a cozinha. Trazia além do empadão de frango que tanto gosto, uma cara desolada que não perguntei. Também não ando bem de humor esses dias. Dias que vinha lembrando Sampaio de não esquecer de pagar minha assinatura no jornal pra não perder a promoção, o que acabou acontecendo.
Sentou-se a mesa como de costume o faz nas manhãs de sexta-feira, sua folga no hospital, e permaneceu calada. Servi o café e me aliei ao seu silencio enquanto ela olhava perdida pro nada, suspirando vez o outra. Eu lamentava em segredo, não saber as previsões do horóscopo. Não acredito, mas gosto de ler por curiosidade. As vezes dá certo.
Levantou-se inventando preguiça, arrastou as sandálias até a janela pra olhar o movimento na rua, e o silencio a perseguia como filho novo preso a bainha da saia. Findei de lavar a louça e já pensava em o almoço quando ousou finalmente. Rodeou palavras até desembuchar que o primo de Salete chegaria naquela tarde, tal que conheceu a vinte anos atrás. – Odeio viver expectativa, amiga.
Peguei a vagem pra descascar, sentei-me ao degrau da porta na intenção de aproveitar o sol apático que fazia. Gilda acendeu um cigarro e contou desde que soube que ele viria, ficou assim, cheia de invenções na cabeça. -Não sei se vou agradá-lo... Faz tantos anos... Já estou velha, sei muito bem homens maduros gostam de meninas moças. Gargalhei de sua irônica fragilidade emocional naquele momento. Não era a minha amiga Gilda quem falava. A mulher mais dissimulada que conheci nesta vida que até lembrei de sua própria mãe dizendo que, verão sem sol é Gilda sem homem, mas não falei dessas recordações pra não deixá-la mais apática e complicada. – deixa de tolice mulher. Olhe pra ti... Tu ainda fazes envergar tronco dos grossos. Sorri. Abraçou-me carente e chorosa que tornou a surpreender, e disso não gosto, pois coisa que não sei é lidar com impotência e fragilidade alheia, ao que me disse que precisava tomar tento na vida. Já estava passando da idade de viver aventurinhas banais que em nada acrescentavam à vida. – também penso isso, falei, mas tem que ser justo com o suposto primo de Salete? Chamegou um olhar vadio dizendo que desde que soube de sua vinda, deu pra tecer sonhos tolos, infantis, lembrá-lo a voz, o cheiro... –Ora, deve ser carência, só isso. Arrastou as sandálias de novo e pousou a janela como coruja assustada contando que Salete não poupou cena ao dizer que o primo estava bem de vida. Dono de oficina mecânica, a melhor da capital! – Então, se o tal entende de recauchutagem, vai gostar de ver seus seios de menina moça. Gargalhamos.
A tarde trabalhei no meu escritório em silencio. Estranho quando os filhos partem pra construir vida igual a nossa, e agente fica assim, inventando outra vida, nova rotina pra seguir.
Sampaio saiu que nem vi. Anda assim, só porque reclamei irritada do desodorante que me deu de presente. “For man”, estava escrito em letras gigantes na fina embalagem que tentou me subornar com o preço no selinho: 19,90 ao que lhe disse que poderia ter custado um salário que não ia andar por aí cheirando a homem, mas como sempre, pra justificar seus “equívocos”, busca histórias pra criar seus enredos fantásticos. Imagina que teve a infelicidade de relembrar as margens do casamento que hoje vive mar aberto, quando eu dizia que gostava de cheirar as camisas dele antes de lavá-las... Mas isso era naquele tempo que muita coisa já se vai esquecida. Doeu-se quando eu retruquei dizendo, que também naquele tempo, em qualquer estação, ligava pro quartel pra contar de minha saudade, e tão louca de amor que era, repetia a ligação a cada meia hora, enquanto que hoje passa o dia que nem lembro dele, a não ser pra dar recado importante. Findei a questão do desodorante dizendo que até o cheiro dele hoje me angustia a alma. Sei que fui dura demais, mas retroceder é errar de novo. Deus... Será que foi por isto que não pagou minha assinatura?
Naquela mesma noite soube que Gilda havia saído pra jantar com o primo de Salete. Aconcheguei-me solitária a rede, com as mesmas dores nas pernas que não passam... Que por graças Sampaio chegou. Trouxe o jornal do dia, um embrulho de presente que me entregou e junto um sorriso apático, que até me lembrou Gilda pela manhã. Abri o embrulho desconfiada, mas era um óleo de ervas cheiroso que afirmou curar dores no corpo e mazelas de amor morimbundo. Sorri dos exageros, pensando que aquele sim era meu Sampaio. Deitou-se junto, a rede, se aconchegou em meu peito que sua respiração quente entre meus seios me excitava, indagou choroso se ainda havia jeito pro amor da gente. Como se não bastasse, mais isso. Sampaio cheirava bom e deslizava mão quente entre minhas coxas que até esqueci as dores. Puxei seu olhar pra mim e disse com carinho que a gente morre, renasce, torna a morrer e o bendito amor nunca finda, nunca acaba e nem se esgota.
_mas... Antes que ousasse estragar aquele momento de carícias boas, adiantei dizendo que a gente é que vai envelhecendo, caducando e falando asneiras...