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A GAITADA DO CLÓVIS
 

 
      A marca inconfundível, aquele tom que mesmo caracterizava o meu amigo – amigo de todo mundo – era a sua olímpica gargalhada. Risada ampla, horizontal e sonora, que, apesar de soar às alturas, não feria os nossos tímpanos. Numa palavra, era uma autêntica gaitada.
 
      Não e não. A gaitada do Clóvis era uma praça enorme de quermesse, deveras animada e colorida, cheinha de alegria. Pois a gaitada do nosso comum amigo era inimitável como o canto mavioso do Agostinho dos Santos, aquele infelicitado e fantástico cantor brasileiro que faleceu num desastre aéreo, lá em Orly, na França.
 
      Conheci a formidável criatura, que virou amigão, no bairro onde moro, até hoje. Mas, coincidentemente, ele residira em outro bairro do qual eu também havia sido morador – o velho Monte Castelo. E, por aí, já desfiávamos, desde o início, muitos e variados assuntos.
 
      Era um tipo gozador. Fazia amizades facilmente, mercê de sua docilidade. Um homem ridente, bonachão e animador do ambiente em que estivesse, ainda que cervejeiro de segunda a domingo. Olhem só o seu bordão, que sempre repetia nos bares: “Nunca bebi!” E, de longe, qualquer um reconhecia a gaitada do Clóvis. Só não saía da linha. Nunca, de jeito nenhum.
 
      Impropério algum, jamais, se derramou de sua boca. Nenhuma palavra áspera com ninguém, nada de fazer bobagens, porém tudo sorrisos, apenas isto, em seus horizontes. E a gaitada, que se fez ícone da nossa caríssima personagem. Para ser preciso, um menino grande. Assim, em vida, foi o Clóvis. E, o melhor de tudo, um sujeito por todos muito benquisto.
 
      Eu, não, que dividia copos de amizades e de conversas com ele, quando eventualmente nos encontrávamos, a molhar as palavras, sempre lá na «tienda del pueblo» do nosso bairro atual. Mas o mundo inteiro o respeitava e só o chamava de Seu Clóvis.
 
      Adolescente, ainda – teria seus quatorze/quinze anos, contou-me ele –, apaixonou-se por uma moça mais velha, mulher feita, quiçá de uns vinte, que atendia por Magnólia. Coroa e já grisalho, pai de lindas jovens, ele não podia nem ouvir a graça dessa moça, que de imediato o homem tresloucava.
 
      Ali mesmo, em cima da música do nome ouvido – Magnólia –, o meu amigo apaixonado declinava milhares de loas e louvações àquela diva, soma fantasiosa tão somente de suas elucubrações platônicas. Uma paixão nunca realizada, ainda que a mulher, bem experiente, dele compreendendo as intenções amorosas, lhe tenha feito também alguns ensaios de ternura e de pinturas.
 
      Para agradar, ou mesmo endoidecer de vez o Clóvis, sempre que, por acaso, eu o entrava em pândegas, logo dava um jeito de mexer neste nome sedutor e mágico: Magnólia. Era tiro e queda. Aí o meu amigo ficava solenemente com o rosto em festa e, por cima das sílabas alongadas do nome suave, replicava: “– Mag-nóooo-lia... A coisa mar linda do mundo!”
 
      O engraçado é que ele sempre tropeçava no advérbio mais e só pronunciava /mar/, isto com a vantagem enfática de reverenciar mais ainda a ingrata que se fora embora para a Bahia e lá se casara com outrem.
 
Fort., 11/06/2015


 
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 11/06/2015
Reeditado em 11/06/2015
Código do texto: T5273509
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