O CUMPRIMENTO DO DEFUNTO

Velhas tardes na cidade do Sol. Um lugarejo bem aconchegante, onde crianças brincam soltas pelas ruas, onde pássaros cantam suas belas canções, onde existem pessoas que ainda sentam às calçadas de suas casas para contarem estórias, causos e ainda declamarem alguns versos poéticos da literatura brasileira.

Márcia, uma grande amiga do tempo de faculdade, hoje funcionária da Caixa Econômica Federal, foi até esta linda cidade para executar um trabalho social. Fez várias amizades, principalmente com os mais poderosos dali e também com a maioria da cidade. A cada dia era convidada para tomar café na casa de um, jantar na casa de outro, almoçar em local rural, passear pela calçada dando entrevista à turma escolar, andar de cavalo nas fazendas próximas e até nadar em cachoeira das redondezas.

Muito querida, Márcia sempre procurou tratar todos iguais e até convite recebeu para ser candidata a vereadora, mas Márcia se recusou, porque detesta expor-se a público.

Em seu trabalho, Márcia conheceu o Sr. Pedro, um político bem quisto pelo lugarejo. Já havia sido prefeito dali por vários mandatos. Foi vereador e era uma pessoa que ia a todos os velórios, enterros, fazia visitas aos hospitais e os doentes daquela cidade.

Muito meigo, mas já com idade um pouco avançada, Seu Pedro, como era chamado, estava com a saúde meio abalada, mas fazia suas visitas, prestava suas homenagens e ainda era um homem público bem ativo.

Márcia o conheceu quando ali chegou. Fazia constantes visitas à sua casa, tinha uma grande amizade pela sua esposa, conhecia seus filhos e dava uma paquerada com um de seus filhos, o mais novo, chamado Róger.

Em um determinado dia, o quadro de saúde de Seu Pedro se agrava e depois muitas tentativas médicas, seu Pedro vem a falecer.

A notícia chocou aquela linda cidade. Muitos choraram pela morte de Seu Pedro. Era uma ótima pessoa. Não desprezava ninguém, nem mesmo alguns pedintes de esmola que ali passavam. Seu Pedro era a pessoa mais boníssima que ali existia. Era, sem dúvida, a melhor pessoa.

A cidade ficou de luto. Foi decretado feriado e o corpo de Seu Pedro será velado no ginásio da cidade.

A população em peso ali compareceu.

Márcia, um pouco tímida para estas coisas, teve que ir e ficar ao lado de seu futuro namorado, dando-lhe forças e coragem naquele momento tão triste.

Vestiu-se Márcia com um vestido escuro, um par de óculos escuros, um lencinho para enxugar as lágrimas e um sapato de salto. Juntamente com Róger, Márcia ficou ali. Meio assustada, ninguém sabia que Márcia tinha um medo de pessoas mortas, que nem perto de funerária ela passava, não ia ao cemitério, não ia a velórios, mas, como funcionária pública, Márcia teria que passar aquele momento tão doloroso, tanto para ela quanto para a família de Seu Pedro.

Quando o velório começou, Márcia ficou ao lado do caixão, juntamente com Róger. Recebia os cumprimentos, agradecia, saia para ir ao banheiro, para tomar um cafezinho e ainda sobrava tempo para ligar para mim, onde dizia que estava com muito medo. Tinha medo do defunto pegar sua mão, pois Seu Pedro gostava muito dela. Então eu lhe dizia que defuntos estão mortos, não incomodavam ninguém. O pânico de Márcia era tão grande que ela me pediu para ir até o velório. Mais ou menos umas três horas de carro. Então prontifiquei em ir.

Assim que chequei, fui cumprimentar a família e Márcia segurou minha mão bem apertada, como se dizia que estava com muito medo. Eu a acalmei e fiquei por ali aguardando o sepultamento.

Em um dado momento, Róger segurava firme a mão do finado, como se estivesse despedindo de seu maior amigo. Estava inconsolável. Pedi a Márcia que o apoiasse. Márcia, com muito medo, chegou perto. Suas pernas tremiam, seus lábios estavam roxeados e suas mãos trêmulas iam-se aproximando do defunto.

Não sei ao certo o que aconteceu, mas Róger deve ter soltado a mão do defunto nas mãos de Márcia, dando a impressão que o próprio defunto apertava as mãos de Márcia como se estivesse cumprimentando-a.

Márcia começou a gritar, a chorar e entrou em pânico, dizendo que o Seu Pedro estava a cumprimentando. Foi uma correria tão grande, que Marcia sai correndo e quase derrubou o caixão e com o salto alto de sua sandália, caiu e quebrou o pé.

As pessoas que ali estavam ficaram assustadas e alguns diziam que o Seu Pedro ainda não tinha morrido, que estava ressuscitando e voltaria para governar a cidade.

De pé quebrado, Márcia passou um bom tempo sem voltar à cidade. A paquera com Róger acabou e quem a socorreu no hospital e em sua casa fui eu.