SENHORA FELICIDADE
 
                 Ao findar o dia de trabalho olhei para trás ao sair pra ver se o serviço havia rendido. Nesse dia eu trabalhava sozinho. A capoeira faltava pouca pra terminar de roçar e eu poder voltar mais cedo para o nosso rancho. Naquele dia trabalhei bastante. Levei o almoço. Meu intervalo pra boia foi de aproximadamente vinte minutos. Não queria voltar no dia seguinte. Eu era muito jovem e com muita disposição. Levantava de madrugada. Enquanto tomava chimarrão compunha alguns versos que a maioria deles se perdeu. Naquele dia fiz um pequeno poema que dei o título de “A busca da felicidade”. O início dizia assim: A felicidade está em nós, e não a vemos... “ Essa frase ficou martelando na minha mente nesse dia. Dinheiro eu não tinha. Carro também não. Passei o dia pensando enquanto roçava. Ao findar meu roçado gritei bem alto que fez eco nas *coxilhas: Onde está felicidade! Vem felicidade...
 
                 Retornava para o rancho sentindo fraqueza de tanta fome e cansado. No caminho havia um olho d’água. Ao lado, algumas pedras. Sobre as mesmas estava uma mulher, uma senhora aparentando oitenta a noventa anos. Um lenço rosa claro na cabeça e uma roupa branca resplandecente. A posição que estava: ajoelhada, mas com as pernas dobradas e sentada sobre os calcanhares. Nem os pés davam pra ver porque estavam cobertos. Olhou pra mim e deu um sorriso, o mais bonito que vi até hoje. Começou a falar comigo sobre o olho d’água. Disse que lamentava a estupidez do ser humano em não preservar a natureza. Aquela mina continuava cristalina porque o homem não encontrou o jeito de destruí-la. E ela prosseguiu:
               
                  - Ouvi você gritar felicidade. Tua voz ecoou nessas *coxilhas e foi ouvida pelos anjos. O que você fala não é nada em vão. Meu filho, você sabe o que é felicidade?
 
                 Nesse momento a velhinha fez como se fosse me abraçar. As compridas mangas da sua roupa eram largas. Ao estender os braços pareciam duas asas refulgentes. Limitei a prestar atenção. Não tive coragem de perguntar nada. Fiquei em silêncio observando. Ela continuou:
 
                 - Meu filho, a felicidade está dentro de você. Só o fato de querer, já está em você. Começa com um sorriso. Se sorrir para as pessoas, elas lhe devolvem muito mais que um simples sorriso. É plantar primeiro pra depois colher. Nunca o contrário. É dando que se recebe. Felicidade é você beber da água cristalina igual a esta que está aqui. Olhe ali e veja. Até as folhinhas do fundo embelezam o local e serve de inspiração para o poeta.
 
                 Deu uma pequena pausa, pegou um caneco que parecia ser de bambu e me deu para que eu enchesse de água e bebesse. Obedeci. Bebi e esqueci a fadiga e a fome que estava sentindo até aquele momento. A tarde começou a esfriar e ela continuou com uma voz que parecia uma criança, mas com tal autoridade que nunca tinha visto.
 
                - Então... essa água é um remédio que o Eterno dá de graça aos filhos Seus. Tenho certeza que suas forças foram renovadas. Mas como estava dizendo...
 
              - Como a senhora se chama? – Interrompi.
             
               - Como me chamo?
            Deu um sorriso. Enquanto ria eu enxugava as lágrimas que não paravam de cair.
           
                 - Pode me chamar de Senhora Felicidade.
   
           Esforcei-me pra parar de soluçar para ouvir com atenção o que me dizia. Ela retornou à conversa:
 
           - Felicidade é: você chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram. É quando um colega seu receber uma promoção, você se alegrar tanto como se fosse você que tivesse recebido aquela bênção. A inveja e a raiz de amargura precisam estar bem longe de você. Felicidade é ouvir o som da natureza e ter a sensibilidade em poetizar tudo o que estiver na sua frente. Felicidade é amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. É fazer aos outros, o que gostaria que fizessem a você. Nunca esqueça que sorrir sempre é ponto de partida pra ser feliz. Felicidade é...
 
              Enquanto peguei o caneco de bambu (era o que parecia) pra tomar mais água, ela fez silêncio. Quando olhei não havia mais ninguém ali. O  caneco guardei comigo. Em vão gritei várias vezes que ecoou naquelas serras: Senhora Felicidade... Felicidade... onde a senhora foi...
 
             Desci para o rancho. As estrelas já começavam a brilhar. O dia se findava. Passei a noite em claro à luz de lamparina. Parecia que eu tinha dormido um século e acabara de acordar. Palavras sábias e tocantes. Nunca vou me esquecer. Quem será aquela nobre velhinha? Será que era um anjo em forma de uma senhora? Seria um...

(Christiano Nunes)
 

*Colinas (Sul do Brasil)
 

 Republicação. Publicado em 2012 no RL