À espera do cometa *
Quando abriu os olhos, despertando de seu sono tardio, não reconheceu onde estava. Olhou confuso para o teto, para o armário, para a estante de livros. Era sua velha estante de livros. E seus livros estavam lá. Sentiu-se mais seguro. Mas aquele não era o seu quarto. Aquela não era a sua cama. Aquele não era o seu cheiro. Teve medo. Gritou:
– Filho! Onde você está? – aquela também não era a sua voz.
Sem resposta.
– Filho! Pare de brincadeira e venha aqui!... – já estava ficando preocupado com a solidão. Mas não conseguia sair da cama.
Alguém se levantou do que pareceu ser um sofá, em outro canto da casa. Eram passos tranquilos, as passadas, curtas e suaves.
– E trate de calçar seus chinelos – sentiu-se melhor agora que estava no controle da situação, embora as palavras saíssem lentas e com dificuldade.
Mas não era seu filho. Foi uma jovem que entrou no quarto. O homem a fitou. Ambos não trocaram palavras por alguns segundos. Ela era uma estranha, mas tinha um aspecto gentil e parecia saber o que estava acontecendo.
– Onde está o meu filho?
– Seu filho está trabalhando – respondeu docemente, aproximando-se da cama.
– Trabalhando? – espantou-se. – Trabalhando? – repetiu, agora para si mesmo. – Trabalhando como? Ele é só um menino!
– Seu filho já cresceu. Ele é adulto agora.
– Ele já é adulto? Como pode isso ter acontecido sem que eu soubesse? Onde eu estava? – agitou-se.
– Você esteve com ele. Mas o tempo passou para todos – a jovem respondia sempre com paciência.
– Para mim também? – refletiu. – Dê-me um espelho! – pediu, com certo temor.
A jovem solícita dirigiu-se até o armário, pegou um espelho de mão, e, entregando-o para o homem, sentou-se calmamente em uma cadeira próxima. O homem hesitou por um tempo, encarando a jovem com desconfiança, mas, respirando fundo, ousou olhar sua imagem no espelho. A princípio, não acreditou. Tocou seu rosto, suas rugas, sua barba branca e cerrada. Conformou-se, afinal:
– Meu Deus...! Então é isso...! Sou eu. Só que envelheci – quase derrubou o espelho no chão. A jovem permaneceu prestativa, recolhendo o espelho das mãos do velho. Uma lágrima escorria pelo seu rosto ressequido e áspero. – Então é verdade – agora o velho reparava nas mãos encarquilhadas. – O tempo passou. Eu vivi até aqui, mas o que aconteceu? É aquela doença? Aquela doença em que a gente esquece das coisas? – perguntou para a jovem, e tudo o que ele queria era a verdade.
A jovem fechou os olhos e acenou a cabeça dolorosa e positivamente. Agora o homem tinha entendido.
– Qual a data de hoje? – perguntou. Queria ambientar-se.
– Quinta-feira, 10 de fevereiro de 2061.
– Fevereiro de 2061!… Fevereiro de 2061, você disse? – certificava-se o velho. E de seu rosto franzido despontou uma inesperada alegria profunda. – Então, isso quer dizer que eu consegui. Eu não perdi o cometa! Este ano ele volta a passar pela Terra. Não se surpreenda por eu saber disso, mas é uma promessa muito antiga. Em 1986, eu vi o cometa Halley da varanda da minha casa. Todo o país tinha parado para ver. A olho nu, era um rastro branco e cintilante vagando lentamente pelo céu estrelado. Eu disse para minha mãe que o queria ver de novo e perguntei quando o cometa voltaria, e mamãe disse que só dali a setenta e cinco anos. Eu tinha apenas seis anos, mas foi a primeira vez em que me projetei velho. Fiz as contas. Teria oitenta e um anos. Eu nunca havia feito planos tão longos. E quem faz planos assim? Quer dizer, quem planeja o que quer fazer daqui a exatos setenta e cinco anos? Pois bem, eu planejei. E aqui estou eu, passados esses anos todos, para meu primeiro, e último, plano de vida. É você que me levará lá fora para eu ver o cometa?
A jovem respondeu que sim. Então o velho teve a ideia de perguntar:
– Qual o seu nome?
– Júlia – apresentou-se.
– Júlia. Que lindo nome. Eu queria ver o meu filho. Onde está o meu filho? – perguntou mais uma vez.
– Trabalhando. Ele sai às seis e logo estará aqui – respondeu mais uma vez.
– Ah, é mesmo. E que horas são?
– Quatro da tarde.
– Então só faltam duas horas para ele chegar. Hum, a doença não afetou minha matemática.
A jovem e o velho riem pela primeira vez.
– Ele tem cinco anos? – insistiu o velho.
– Não. Ele agora tem cinquenta anos.
– Cinquenta? Tudo isso...? – quase não acreditava. O velho pareceu pensar em algo. Em algo terrível e angustiante. Pensou nos caminhos trilhados e no fim de cada coisa sob o céu, e ousou saber:
– Meus pais estão vivos?
A jovem hesitou, mas decidiu que era melhor contar a verdade.
– Não.
– E minha esposa? – lembrou de perguntar.
– Já se foi há três anos – a jovem respondeu com pesar.
– E o meu filho?
– Ele está ótimo.
– Então só sobramos eu e o filho. Que idade ele tem?
– Ele tem cinquenta anos agora.
– Cinquenta anos, e agora o deixarei só após todos esses anos. Você sabia que quando ele era criança perguntou uma vez para mim qual a idade ele teria no dia em que os pais morressem, para que ele soubesse quantos anos faltavam para ele ficar sozinho neste mundo? Pois bem. Então agora sabemos. Será com cinquenta anos.
– Não diga isso. Você ainda terá muitos anos de vida – tentava aliviar a divagação do velho.
– Mais anos de vida…? Para quê? A vida, minha cara, é uma ironia. Este universo demorou bilhões e bilhões de anos para formar estrelas e planetas, e tudo o que foi possível para haver vida neste pontinho azul. Então, depois de mais milhões e milhões de anos, aqui estamos nós, conscientes de que somos a maior expressão da existência. Bilhões e bilhões de anos para o universo chegar até nós, para o universo ser o que somos, e então como ele retribui esta dádiva? Condenando-os a menos de um século de vida neste mundo. O universo tem um senso de humor que eu não entendo. Olhe só para mim, este velho decrépito que mal consegue articular a fala. Minha língua está mole e meu queixo está duro. Pareço mais a manifestação de um Preto Velho. Talvez eu possa ser. Talvez eu tenha cumprido minha missão. Talvez esta seja minha última encarnação e eu volte para este mundo apenas para ver como meu filho está indo. Não que eu acredite nisso. Só acho que seria bom se isso pudesse acontecer.
A jovem ficou em silêncio um tempo. Seus olhos brilhavam como se ela também quisesse que fosse assim. Depois perguntou gentilmente se o velho queria algo.
– Mas eu nem sei quem você é.
– Eu sou a Júlia.
– É um nome bonito. Cadê o meu filho?
– Está trabalhando, mas daqui a pouco ele chega.
– Trabalhando? Mas ele é só uma criança.
– Ele cresceu. É um adulto agora.
– Quero ver ele. Não me lembro do rosto dele.
– Daqui a pouco ele chega.
– Tem uma foto dele como ele é hoje? Eu só lembro dele quando tinha cinco anos de idade.
A jovem volta-se para o armário e entrega uma foto recente do filho.
– Aqui está.
– Ó, Deus! Ó, Deus! Como ele continua lindo! Como cresceu! Às vezes ele abria esse sorriso, o mesmo sorriso de quando tinha um ano de idade, e então só assim eu me lembrava do rosto dele quando ele tinha um ano de idade. Eu precisava ver as fotos para me lembrar de como ele era com um ano, com dois anos, com três anos. Eles mudam tanto, que a gente se esquece de como eram! Sabe quando dizem que os filhos crescem rápido? Pois saiba que é a mais pura verdade. A vida é engraçada. Eu me lembro de coisas que meu filho não deve se lembrar. Quando ele tinha quatro ou cinco anos. Quando a gente cresce, esquece de coisas que fazíamos quando éramos pequenos. Só os pais lembram. Eu me lembro de quando meu filho corria pelo parque. Cada vez que passávamos pelo parque, ele tentava pular sobre uma barra de exercícios que tinha lá. Ele se esforçava ao máximo, mas suas mãozinhas, mesmo com toda a vontade, apenas permitiam que ele se pendurasse. Ele erguia os pezinhos, mas nada de passar sobre a barra. Ele foi crescendo e um dia finalmente conseguiu. Pude ver os anos passando e ele finalmente poder pular sobre aquela barra. Mas ele não vai se lembrar deste feito tão heroico, tão decisivo para todo o resto. Não vai mesmo. Então me diga se é justo isso, que com ou sem doença, esqueçamos de coisas assim. Que eu me lembre disso e ele se esqueça.
– Realmente não é justo. Deveríamos nos recordar de tudo, mesmo – concordava, enquanto ouvia sobre o filho do velho coisas que nem mesmo ela sabia.
– Quem é você mesmo? – quis saber o velho.
– Eu sou a Júlia.
– Júlia. Lindo nome. Mas o que você faz aqui na minha casa?
– Essa é a minha casa. Você mora aqui.
– Eu não lembro de você.
– Eu sou sua neta.
– Eu sou avô? Meu filho teve um filho?
– Sim. Eu sou filha dele.
– E você teve filhos?
– Não. Tenho vinte anos. Não sou casada e nem tenho filhos.
– Mas case-se e tenha filhos um dia, minha jovem. Você pode pensar que não precisa se casar ou que filhos atrapalham a carreira. Mas veja você, mesmo tão jovem agora. Um dia também chegará ao este humilhante fim como eu, e o que você passará adiante? Aqui vai uma lição da vida: amor é mesmo a coisa mais importante do mundo. É o nosso caminho para a imortalidade. É o nosso troco para o pagamento mesquinho do universo de apenas nos ter dado um curto fôlego de vida. Ame, minha jovem, e passe o amor adiante.
A jovem sorriu.
– Qual o seu nome mesmo?
– Meu nome é Júlia.
– Júlia. Que belo nome. Minha mulher gostava desse nome. Se eu tivesse uma filha ela se chamaria Júlia. Quem escolheu seu nome?
– Minha avó.
– Onde ela está?
– Já se foi há três anos.
– Ah, é. E onde eu estou?
– Na minha casa. Você mora aqui.
– Ah, é. Eu ando esquecido das coisas. Devo estar doente. Mas sabe qual é o lado bom dessa doença? É que amanhã poderei ouvir novamente todas essas coisas boas que aconteceram, e me encantar com meu filho novamente. Quer dizer, quantas pessoas podem realmente fazer isso, encantar-se com sua vida todos os dias? Quantas pessoas se recordam dos feitos dos seus filhos todos os dias? Acho que não é preciso de uma doença para que as pessoas se esqueçam disso. Então me faça um favor, Júlia. Se eu acordar e tiver me esquecido de você, e que dia é hoje, e aonde eu estou, me conte tudo. Mostre as fotos, me traga um espelho. Leia algum livro que eu goste, de quando eu era criança. Prometa que não será você a se esquecer de quem somos.
– E vou me lembrar disso.
– Que dia é hoje mesmo?
– Quinta-feira.
– Quinta-feira…! E em que ano estamos?
– 2061.
– 2061…! Isso quer dizer que eu consegui.
Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
(publicado em: Palavra é Arte – Contos e Crônicas, 2018)
Quando abriu os olhos, despertando de seu sono tardio, não reconheceu onde estava. Olhou confuso para o teto, para o armário, para a estante de livros. Era sua velha estante de livros. E seus livros estavam lá. Sentiu-se mais seguro. Mas aquele não era o seu quarto. Aquela não era a sua cama. Aquele não era o seu cheiro. Teve medo. Gritou:
– Filho! Onde você está? – aquela também não era a sua voz.
Sem resposta.
– Filho! Pare de brincadeira e venha aqui!... – já estava ficando preocupado com a solidão. Mas não conseguia sair da cama.
Alguém se levantou do que pareceu ser um sofá, em outro canto da casa. Eram passos tranquilos, as passadas, curtas e suaves.
– E trate de calçar seus chinelos – sentiu-se melhor agora que estava no controle da situação, embora as palavras saíssem lentas e com dificuldade.
Mas não era seu filho. Foi uma jovem que entrou no quarto. O homem a fitou. Ambos não trocaram palavras por alguns segundos. Ela era uma estranha, mas tinha um aspecto gentil e parecia saber o que estava acontecendo.
– Onde está o meu filho?
– Seu filho está trabalhando – respondeu docemente, aproximando-se da cama.
– Trabalhando? – espantou-se. – Trabalhando? – repetiu, agora para si mesmo. – Trabalhando como? Ele é só um menino!
– Seu filho já cresceu. Ele é adulto agora.
– Ele já é adulto? Como pode isso ter acontecido sem que eu soubesse? Onde eu estava? – agitou-se.
– Você esteve com ele. Mas o tempo passou para todos – a jovem respondia sempre com paciência.
– Para mim também? – refletiu. – Dê-me um espelho! – pediu, com certo temor.
A jovem solícita dirigiu-se até o armário, pegou um espelho de mão, e, entregando-o para o homem, sentou-se calmamente em uma cadeira próxima. O homem hesitou por um tempo, encarando a jovem com desconfiança, mas, respirando fundo, ousou olhar sua imagem no espelho. A princípio, não acreditou. Tocou seu rosto, suas rugas, sua barba branca e cerrada. Conformou-se, afinal:
– Meu Deus...! Então é isso...! Sou eu. Só que envelheci – quase derrubou o espelho no chão. A jovem permaneceu prestativa, recolhendo o espelho das mãos do velho. Uma lágrima escorria pelo seu rosto ressequido e áspero. – Então é verdade – agora o velho reparava nas mãos encarquilhadas. – O tempo passou. Eu vivi até aqui, mas o que aconteceu? É aquela doença? Aquela doença em que a gente esquece das coisas? – perguntou para a jovem, e tudo o que ele queria era a verdade.
A jovem fechou os olhos e acenou a cabeça dolorosa e positivamente. Agora o homem tinha entendido.
– Qual a data de hoje? – perguntou. Queria ambientar-se.
– Quinta-feira, 10 de fevereiro de 2061.
– Fevereiro de 2061!… Fevereiro de 2061, você disse? – certificava-se o velho. E de seu rosto franzido despontou uma inesperada alegria profunda. – Então, isso quer dizer que eu consegui. Eu não perdi o cometa! Este ano ele volta a passar pela Terra. Não se surpreenda por eu saber disso, mas é uma promessa muito antiga. Em 1986, eu vi o cometa Halley da varanda da minha casa. Todo o país tinha parado para ver. A olho nu, era um rastro branco e cintilante vagando lentamente pelo céu estrelado. Eu disse para minha mãe que o queria ver de novo e perguntei quando o cometa voltaria, e mamãe disse que só dali a setenta e cinco anos. Eu tinha apenas seis anos, mas foi a primeira vez em que me projetei velho. Fiz as contas. Teria oitenta e um anos. Eu nunca havia feito planos tão longos. E quem faz planos assim? Quer dizer, quem planeja o que quer fazer daqui a exatos setenta e cinco anos? Pois bem, eu planejei. E aqui estou eu, passados esses anos todos, para meu primeiro, e último, plano de vida. É você que me levará lá fora para eu ver o cometa?
A jovem respondeu que sim. Então o velho teve a ideia de perguntar:
– Qual o seu nome?
– Júlia – apresentou-se.
– Júlia. Que lindo nome. Eu queria ver o meu filho. Onde está o meu filho? – perguntou mais uma vez.
– Trabalhando. Ele sai às seis e logo estará aqui – respondeu mais uma vez.
– Ah, é mesmo. E que horas são?
– Quatro da tarde.
– Então só faltam duas horas para ele chegar. Hum, a doença não afetou minha matemática.
A jovem e o velho riem pela primeira vez.
– Ele tem cinco anos? – insistiu o velho.
– Não. Ele agora tem cinquenta anos.
– Cinquenta? Tudo isso...? – quase não acreditava. O velho pareceu pensar em algo. Em algo terrível e angustiante. Pensou nos caminhos trilhados e no fim de cada coisa sob o céu, e ousou saber:
– Meus pais estão vivos?
A jovem hesitou, mas decidiu que era melhor contar a verdade.
– Não.
– E minha esposa? – lembrou de perguntar.
– Já se foi há três anos – a jovem respondeu com pesar.
– E o meu filho?
– Ele está ótimo.
– Então só sobramos eu e o filho. Que idade ele tem?
– Ele tem cinquenta anos agora.
– Cinquenta anos, e agora o deixarei só após todos esses anos. Você sabia que quando ele era criança perguntou uma vez para mim qual a idade ele teria no dia em que os pais morressem, para que ele soubesse quantos anos faltavam para ele ficar sozinho neste mundo? Pois bem. Então agora sabemos. Será com cinquenta anos.
– Não diga isso. Você ainda terá muitos anos de vida – tentava aliviar a divagação do velho.
– Mais anos de vida…? Para quê? A vida, minha cara, é uma ironia. Este universo demorou bilhões e bilhões de anos para formar estrelas e planetas, e tudo o que foi possível para haver vida neste pontinho azul. Então, depois de mais milhões e milhões de anos, aqui estamos nós, conscientes de que somos a maior expressão da existência. Bilhões e bilhões de anos para o universo chegar até nós, para o universo ser o que somos, e então como ele retribui esta dádiva? Condenando-os a menos de um século de vida neste mundo. O universo tem um senso de humor que eu não entendo. Olhe só para mim, este velho decrépito que mal consegue articular a fala. Minha língua está mole e meu queixo está duro. Pareço mais a manifestação de um Preto Velho. Talvez eu possa ser. Talvez eu tenha cumprido minha missão. Talvez esta seja minha última encarnação e eu volte para este mundo apenas para ver como meu filho está indo. Não que eu acredite nisso. Só acho que seria bom se isso pudesse acontecer.
A jovem ficou em silêncio um tempo. Seus olhos brilhavam como se ela também quisesse que fosse assim. Depois perguntou gentilmente se o velho queria algo.
– Mas eu nem sei quem você é.
– Eu sou a Júlia.
– É um nome bonito. Cadê o meu filho?
– Está trabalhando, mas daqui a pouco ele chega.
– Trabalhando? Mas ele é só uma criança.
– Ele cresceu. É um adulto agora.
– Quero ver ele. Não me lembro do rosto dele.
– Daqui a pouco ele chega.
– Tem uma foto dele como ele é hoje? Eu só lembro dele quando tinha cinco anos de idade.
A jovem volta-se para o armário e entrega uma foto recente do filho.
– Aqui está.
– Ó, Deus! Ó, Deus! Como ele continua lindo! Como cresceu! Às vezes ele abria esse sorriso, o mesmo sorriso de quando tinha um ano de idade, e então só assim eu me lembrava do rosto dele quando ele tinha um ano de idade. Eu precisava ver as fotos para me lembrar de como ele era com um ano, com dois anos, com três anos. Eles mudam tanto, que a gente se esquece de como eram! Sabe quando dizem que os filhos crescem rápido? Pois saiba que é a mais pura verdade. A vida é engraçada. Eu me lembro de coisas que meu filho não deve se lembrar. Quando ele tinha quatro ou cinco anos. Quando a gente cresce, esquece de coisas que fazíamos quando éramos pequenos. Só os pais lembram. Eu me lembro de quando meu filho corria pelo parque. Cada vez que passávamos pelo parque, ele tentava pular sobre uma barra de exercícios que tinha lá. Ele se esforçava ao máximo, mas suas mãozinhas, mesmo com toda a vontade, apenas permitiam que ele se pendurasse. Ele erguia os pezinhos, mas nada de passar sobre a barra. Ele foi crescendo e um dia finalmente conseguiu. Pude ver os anos passando e ele finalmente poder pular sobre aquela barra. Mas ele não vai se lembrar deste feito tão heroico, tão decisivo para todo o resto. Não vai mesmo. Então me diga se é justo isso, que com ou sem doença, esqueçamos de coisas assim. Que eu me lembre disso e ele se esqueça.
– Realmente não é justo. Deveríamos nos recordar de tudo, mesmo – concordava, enquanto ouvia sobre o filho do velho coisas que nem mesmo ela sabia.
– Quem é você mesmo? – quis saber o velho.
– Eu sou a Júlia.
– Júlia. Lindo nome. Mas o que você faz aqui na minha casa?
– Essa é a minha casa. Você mora aqui.
– Eu não lembro de você.
– Eu sou sua neta.
– Eu sou avô? Meu filho teve um filho?
– Sim. Eu sou filha dele.
– E você teve filhos?
– Não. Tenho vinte anos. Não sou casada e nem tenho filhos.
– Mas case-se e tenha filhos um dia, minha jovem. Você pode pensar que não precisa se casar ou que filhos atrapalham a carreira. Mas veja você, mesmo tão jovem agora. Um dia também chegará ao este humilhante fim como eu, e o que você passará adiante? Aqui vai uma lição da vida: amor é mesmo a coisa mais importante do mundo. É o nosso caminho para a imortalidade. É o nosso troco para o pagamento mesquinho do universo de apenas nos ter dado um curto fôlego de vida. Ame, minha jovem, e passe o amor adiante.
A jovem sorriu.
– Qual o seu nome mesmo?
– Meu nome é Júlia.
– Júlia. Que belo nome. Minha mulher gostava desse nome. Se eu tivesse uma filha ela se chamaria Júlia. Quem escolheu seu nome?
– Minha avó.
– Onde ela está?
– Já se foi há três anos.
– Ah, é. E onde eu estou?
– Na minha casa. Você mora aqui.
– Ah, é. Eu ando esquecido das coisas. Devo estar doente. Mas sabe qual é o lado bom dessa doença? É que amanhã poderei ouvir novamente todas essas coisas boas que aconteceram, e me encantar com meu filho novamente. Quer dizer, quantas pessoas podem realmente fazer isso, encantar-se com sua vida todos os dias? Quantas pessoas se recordam dos feitos dos seus filhos todos os dias? Acho que não é preciso de uma doença para que as pessoas se esqueçam disso. Então me faça um favor, Júlia. Se eu acordar e tiver me esquecido de você, e que dia é hoje, e aonde eu estou, me conte tudo. Mostre as fotos, me traga um espelho. Leia algum livro que eu goste, de quando eu era criança. Prometa que não será você a se esquecer de quem somos.
– E vou me lembrar disso.
– Que dia é hoje mesmo?
– Quinta-feira.
– Quinta-feira…! E em que ano estamos?
– 2061.
– 2061…! Isso quer dizer que eu consegui.
Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
(publicado em: Palavra é Arte – Contos e Crônicas, 2018)