Conto de fazenda
O calor do mês de agosto sempre me traz à boca um gosto, velho conhecido meu, da poeira da fazenda do meu falecido avô. É o gosto que sentia no tempo de menino, quando da época das férias escolares. Tenho ainda a nítida lembrança dos longos momentos que passava no vasto pomar que ladeava a estrada de terra.
Sempre me sentava, sozinho, sobre o arado do trator, numa sombra morna, esperando por um carro que passasse. Quando isso de fato acontecia, escolhia um lugar para me encostar e mirava um espelho imaginário, oblíquo, tentando inutilmente ensaiar uma pose de Randolph Scott, num desses filmes antigos que tinha o costume de assistir em casa.
Todo o ano, esse mesmo calor de agosto, desencadeia nos recôncavos do meu fustigado cérebro, lembranças cíclicas, umas puxadas pelas outras qual crianças em brincadeira de roda. Me fazem rir ou afligir, nos dois casos de uma nostalgia delgada e sutil, que se não chega a me abalar, ao menos me toca.
Lembro-me de um caso específico que ocorreu por volta dos meus doze anos. Estava embaixo de uma Barriguda, cuja sombra estendia-se por vários metros quase até a antiga sede da fazenda. Era um local muito agradável. Tinha o costume de passar ali diversas tardes, sempre depois do farto almoço que era servido na fazenda.
Contudo aquele dia me pareceu diferente. Estava distraído, cortando com o canivete afiadíssimo lascas de madeira.
Ouvi ao longe o som de vozes trazidas pelo vento. Não sei ao certo o porquê, mas as vozes femininas me lembravam as vozes que se ouve numa casa cheia, enquanto ainda se dorme, logo antes de se acordar e tomar o café da manhã.
Olhei em redor, mas não vi ninguém. Continuei a tirar lascas da madeira, intrigado com a visita iminente, mas fingindo-me bastante ocupado.
Do local de onde emanavam as vozes até a nossa casa era um descampado aberto, muito limpo, do qual eu tinha uma visão clara. Eu sabia que as donas das ruidosas vozes, em algum momento passariam por ali. Fiquei quieto, como uma fera acuada na enorme árvore. Minha timidez tomou esta atitude por mim, sem que na hora eu me desse conta disso.
Após alguns minutos percebi duas figuras femininas se atravessando o grande gramado que dava à sede. Mãe e filha, pensei. Caminhavam despreocupadas, pareciam alegres e falavam bastante. A distância entre eu e elas começou-me a ficar perigosamente próxima. Estava a ponto de ser descoberto e por isso me encolhi mais ainda. Me ajeitei entre as raízes tabulares, como quem se senta pra assistir um espetáculo. E o que se seguiu realmente o foi.
Reconheci nas duas faces coradas de sol, Fernanda e Dona Isaura. Esta, amiga de mamãe, a outra sua filha.
Fernanda tinha a minha idade e havia algumas semanas era a única dona dos meus pensamentos. No momento em que a reconheci, deixei de ver todo o resto. O longo gramado seco de sol, as árvores ao fundo, a própria Dona Isaura, tudo sumiu. Os meus olhos só enxergavam Fernanda descendo o trecho em leve declive como se fosse uma passarela iluminada.
Ela descia com suavidade e graça. Conseguia conciliar com perfeição sutil a firmeza dos passos e a leveza dos movimentos sem nem mesmo saber que os tinha. Caminhava como se soubesse milimetricamente o ponto em que seus pés tocariam no solo seco. Os braços finos dançavam como longas fitas de seda ao vento brando. Os cabelos igualmente longos, negros, escorriam-lhe pelas espáduas e costas, como uma cachoeira de águas ferruginosas e mornas. Vez por outra Fernanda os jogava para traz e para o alto, displicentemente. Era realmente uma menina muito bonita. Ficava ainda mais bonita quando colocava o vestido branco que usava na ocasião. Era esvoaçante, crivado de pequenas flores verdes, muito delicadas.
Esta é uma memória que me vem à cabeça nesse calor de agosto, todos os anos.
Aqueles poucos minutos em que eu a vi descer pelo caminho, me pareceram horas. Eu ali, acuado contra os grandes espinhos da barriguda, senti o corpo estremecer e não queria que Fernanda chegasse nunca ao sei destino. Queria que o descampado fosse uma esteira rolante, na qual a pequena estaria sempre em movimento mas sem sair dali.
Mas ela continuou, ia já me dando as costas, saltitando na ponta das sandálias brancas, quando deteve-se num movimento rápido. Virou-se bruscamente e me olhou firme, mas com uma ternura inaudita. Seus olhos negros como os cabelos. Com a segurança e a maturidade que um menino de 12 anos jamais traria em sua bagagem, ela me acenou contundentemente. E era toda sorriso. Era como se soubesse, mesmo antes de sair de casa que eu estaria ali, tímido, fechado em copas. Ela sempre soube. Acho que era justamente daí que ela extraía tanta segurança.
Eu fingi que não vira. Ela vira que eu vira. Virou-se sem mágoa como que perdoando minha falta de tato e minha notória timidez. Entrou em casa de mamãe alegre, e aonde só entrei depois que ela se fora.
Depois nunca mais a vi. Mudara-se para Minas e não tive mais notícias. Também não as procurei, muito por medo de expor a quem quer que fosse o que eu guardava dentro do peito. Essas coisas do coração devem ser assim mesmo, imaginava.
Todos os anos essa memória... tão nítida e viva. Colorida. Todos os anos, nesse calor de agosto.
Esse fato me marca e me faz pensar no quanto perdi por não me arriscar. Tanto naquele dia na fazenda como em outras ocasiões que não me lembro tão bem. Naquele dia tive minha primeira frustração.
Por um tempo me castiguei e maldisse a vida e minha própria covardia. Inutilmente, já que as águas passadas não movem os moinhos. Hoje rio de mim mesmo, da minha inocência, das atitudes pueris. Elas são os açúcares que adoçam a realidade, tão matemática do mundo adulto, tão pragmático!
Todos os anos, nesse calor de agosto.