O cabra e a cobra
Gumercindo, sessentão conservado, conservador do estilo brega chique, também fazia questão de ostentar suas vaidades com bons carros, lanchas e festas com a presença de lindas garotas.
Sua esposa Helena, embora nove anos mais nova do que ele, mostrava visivelmente uma aparência de nove mais velha.
Sem vaidades, ela conservava os mesmos hábitos e modos simples de quando se casaram sem um tostão.
Ajudou muito Gumercindo para obter a fortuna que agora tinham, com trabalho duro na roça, economias e privações homéricas.
Além desses desgastes, teve muita dificuldade para criar seus sete filhos e dois afilhados, pois Gumercindo era extremamente rígido, preconceituoso e agressivo. Tratava as mulheres com desconsideração e desdém, incluindo as próprias filhas. Achava que as mulheres já nasciam desqualificadas com relação aos homens.
Foi que num determinado dia Gumercindo necessitando comprar bois para uma de suas fazendas, resolveu unir o útil ao agradável.
Tinha uma caboclinha, uma de suas amantes, que morava num pequeno sítio próximo de sua fazenda e pensou fazer-lhe uma surpresa.
Pegou um jatinho logo cedo e na hora do almoço já estava por lá.
Por um capricho de Gumercindo, o administrador de sua fazenda estava aguardando-o na cidade com Corisco, seu estimado cavalo alazão. Um animal incrivelmente bravo, adestrado pelo próprio Gumercindo e que possuía admirável obediência aos seus comandos. Conhecia seu dono como ninguém e a nenhuma outra pessoa era dada autorização para monta-lo.
Logo que Gumercindo o avistou, deu um assovio e seu alazão com extrema violência soltou as rédeas das mãos do administrador e foi galopando para junto de seu dono.
Gumercindo deu uma gargalhada, todo cheio de vaidade e orgulho.
Montou o alazão, pregou-lhe as esporas nas ancas, o animal sentiu o drama e seguiu em disparada para o sítio da amada.
Na realidade o Gumercindo parecia nunca ter amado ninguém, pois era nítido o seu gostar somente por si mesmo.
Com exceção de Helena, as mulheres que iam com ele para cama demonstravam apenas interesse pelo seu dinheiro e nada mais, pois sua grosseria era insuportável.
Num certo local daquela estrada rural passava um ribeirão com belas arvores frondosas e Gumercindo costumava parar ali para o cavalo tomar agua e descansar.
Apeou, e deixou o Corisco a vontade por ali.
Enquanto aguardava resolveu dar uma deitada sobre a copa de uma imensa figueira. Aquele descanso lhe traria ainda mais energia, para se jogar como um cachaço sobre a coitada da aguardada donzela.
Como o sol estava a pino, o calor muito intenso e o local agradável, Gumercindo acabou pegando no sono.
Um sono tão pesado que acabou sonhando que estava dormindo e uma cobra veio em sua direção. Viu que Corisco riscava o casco no chão tentando em vão protege-lo. A cobra aproveitando-se daquele seu momento de inércia foi se enrolando em seu corpo.
Gumercindo achou estranho o fato de que conforme a cobra enrolava, seu desespero ia desaparecendo e dando-lhe uma sensação de incrível bem estar.
Totalmente aprisionado a víbora cravou-lhe as presas e injetou-lhe seu poderoso veneno. Neste exato instante Gumercindo acordou.
Foi um sonho tão nítido que Gumercindo estava pingando de suor mas com uma eufórica alegria.
Ao tentar levantar sentiu-se muito tonto e confuso, como se estivesse num corpo que não lhe pertencia. Percebeu que Corisco estava arisco e olhava em sua direção com uma certa estranheza também.
Olhou para a pata de seu cavalo e viu bem próxima, uma imensa cobra jararaca, mas que parecia estar morta.
Gumercindo exclamou: “caramba aquilo tudo foi verdade e meu fiel alazão me salvou de seu veneno de morte!”
Quase que instintivamente passou a mão sobre o local que a cobra havia-lhe picado no sonho e confirmou a veracidade dos fatos ao sentir uma dor no local. Abriu a camisa e avistou na sua carne as marcas das presas da víbora.
O sonho aconteceu de verdade.
Levantou-se, mas ao tentar andar sentiu que seus gestos de pernas e mãos eram diferentes do normal. Um gesto muito delicado para o seu jeito de homem rude e metido a macho.
Tentou evitar aqueles trejeitos mas fugiam-lhe de seus comandos. Seus modos estavam bem diferenciados do seu habitual jeitão de ser e isso realmente o deixou apavorado.
Enquanto isso Corisco assistia de longe a situação com aquela mesma estranheza no olhar.
Gumercindo tentou dar um assobio mas saiu tão chocho e sem vigor que Corisco sequer ensaiou sair do lugar.
Ele tomou aquilo como uma ofensa, uma grave desobediência de seu adestrado cavalo. Tentou dar-lhe um corretivo, mas a sua voz saiu tão doce e aveludada que perdeu a pose. Parecia uma delicada donzela dos contos de fadas.
Certamente aquilo tudo já seria o efeito do envenenamento, pensou Gumercindo. Ele precisava sair dali e procurar imediatamente um hospital.
Como Corisco não foi até Gumercindo, Gumercindo foi até Corisco, mas logo que tocou no cavalo o bicho estranhou, ficou arredio, deu uma empinada e relinchou pra valer.
Gumercindo ficou tão assustado que até chorou de medo da violenta atitude de Corisco. Novamente veio-lhe a estranheza desse seu maneirismo, afinal chorar e procurar um médico faziam parte de uma grande mariquice. Justamente ele que achava que frufrus resolviam-se no chicote e na espora.
Estava indignadíssimo com aquele comportamento selvagem de seu cavalinho de ouro.
O sol já estava se pondo e Gumercindo com muito jeito, alisamento de crina e carinho conseguiu convencer Corisco a deixar-se montar, porém não a ser guiado. Afinal de contas o seu dono não tinha mesmo o comando nem de seu próprio cabresto.
O cavalo acostumado a ir para a casa da garota tomou a direção e ali foi.
- O de casa… Disse Gumercindo em meiga voz ao chegar diante do portão.
Ritinha não reconhecendo a voz saiu na varanda e estranhou aquele homem que costumava ir entrando casa adentro, se fazendo avisar somente pelo barulho agudo do impacto do salto carrapeta das botas e das esporas no chão.
- Oi meu amor eu estava aguardando por você, disse Ritinha em meiga voz ao avista-lo.
Ritinha garota vivida com pessoas de todos os tipos, logo percebeu uma mudança significativa nos modos de Gumercindo, porem não se atreveu a perguntar o que houve, mesmo porque os seus propósitos ali não eram de caráter investigativo e sim interesseiro e lucrativo.
Ele tratou-a com respeito e carinho, ficaram conversando até tarde da noite sobre diversas coisas que jamais seriam anteriormente conversadas. Deitaram-se e somente dormiram juntos, sem mais nada.
Logo cedo Gumercindo saiu com destino a sua fazenda e Ritinha ficou ali por horas a refletir a respeito daquela mudança tão radical.
Ao longo do tempo que Gumercindo efetuou as compras necessárias, também procurou alguns médicos e nenhum deles tinha um diagnóstico para sua questão.
Desde o dia que Gumercindo foi envolvido e picado pela cobra, ele tentou de todas as maneiras esconder a sua nova forma de ser. Por mais que se policiasse, quando percebia, já estava completamente “a vontade”.
Como estava num estado de felicidade que nunca teve na vida, deu por encerrado a questão e voltou para casa.
Logo que chegou já foi procurar Helena. Ela estava na cozinha e ao vê-la deu-lhe um demorado abraço e um beijo que Helena jamais havia recebido.
Embora tenha gostado plenamente daquele carinho, ficou na defensiva com relação aquela atitude dele.
Ficou imaginando o que ele estava pretendendo. Estaria ele tentando amacia-la para depois abandona-la, deixando-a sem eira nem beira?
Helena desmontou quando Gumercindo fez-lhe uma melosa declaração de amor.
A forma dele falar e gesticular foi tão cheia de donzelice que até o próprio Gumercindo tentou esconder, mas foi novamente em vão. Assim soltou-se pra valer e contou-lhe com detalhes, tudo que houve em sua viagem, inclusive de seu relacionamento com Ritinha e com as outras mais ao longo do casamento.
O tempo foi passando e Helena foi percebendo que aquele “cavalo” do seu marido, que vivia tratando a todos nos cascos havia realmente mudado pra melhor e.... bem melhor. Comparar Gumercindo com um cavalo é de dar tristeza até nos verdadeiros cavalos, portanto ressalvas devem ser feitas ao valoroso Corisco.
Gradativamente aquela estupidez e maneirismos de menina em flor foram desaparecendo, porem o carinho e a afetividade daquele novo Gumercindo se mantiveram.
Helena e seus filhos estavam felizes.
Agora valia a pena viver aquele casamento de tantos anos, onde a luta e a perseverança não estavam sendo em vão.
Helena sorriu quando lembrou-se que para fazer o soro antiofídico, injeta-se o veneno da cobra num cavalo. A verdade é que o antídoto funcionou. O veneno não matou aquele cavalo e sim curou-o.
Assim sendo, Helena estava disposta a recomeçar a vida com Gumercindo nessas novas condições tão agradáveis. Depois disso tudo Helena teve mais um filho com Gumercindo e conta-se que estão vivendo num ninho de amor e alegrias.