730-O AÇOUGUEIRO E O SAPATEIRO -

Na pequena São Roque de Minas, encravada nas serranias de Minas Gerais, Cidade do interior era assim: todo mundo sabia da vida de todo mundo, e quando não se sabia com certeza, era a fofoca que corria sobre os mais triviais ou os mais importantes acontecimentos.

Era o tempo em que as profissões e funções eram bem definidas. Havia o padeiro que entregava o pão duas vezes por dia, de porta em porta. O leiteiro, o carpinteiro, o carteiro que, além de entregar cartas, fazia um bico, vendendo revistas semanais como O Cruzeiro, ou mensais como a A Cigarra ou Alterosa. O sapateiro, o verdureiro e até o bananeiro: Tonico Bananeiro só vendia bananas e percorria a cidade de uma ponta a outra, em sua carrocinha, vendendo bananas. O açougueiro, o rachador de lenha, Charnata, o homem mais sem educação que já se viu. O vendedor de bilhete de loterias.

O movimento do açougue de seu Emídio era bom, pois ficava perto do centro e era o preferido das empregadas das madames, mulheres dos fazendeiros, e também da pensão do Josias, do pequeno Grande Hotel. Por isso, era ajudado pela mulher, Eufrosina, que atendia o balcão enquanto o marido cortava as peças de carnes, serrava os ossos e retirava o sebo dos entremeios dos músculos. O que não impedia de, mesmo trabalhando de costas, tivesse um olho na mulher, que recebia os pagamentos e fazia o troco do dinheiro.

E foi assim, naquele cuidado com tudo e com todos, que ele passou a perceber a presença diária no açougue, do Tonico Sapateiro. Todas as manhãs, o sapateiro passava e comprava cem gramas de carne moída.

—É pro cachorro. — Explicava, sem necessidade, à dona Eufrosina. Além do destino da carne, entrava em conversa com a mulher sobre outros assuntos.

Manipulando as carnes, miúdos e ossos, Emídio ouvia. Só ficou mesmo desconfiado quando Tonico Sapateiro passou a comprar mais cem gramas de carne todas as tardes, e a conversa se estendendo.

—Deixa de dar trela pro Tonico Sapateiro. — Avisou à esposa, certa noite. — Ele proseia demais. Não gosto da conversa dele. Tou sabendo que não tem cachorro nenhum na sua casa.

A esposa estrilou:

— Mais o que é isso, Emidio! Eu nunca levantei meus óios pra homem nenhum, muito menos pro sapateiro. Deixa de besteira!

No dia seguinte, a cabeça ainda quente da discussão da noite anterior, quando Tonico apareceu de manhã para as inevitáveis cem gramas de carne, Emídio o chamou para ver como usava a machadinha de picar carnes. Pegou a maior, e começou a dar vigorosas machadadas numa coxa inteira de boi, cortando as carnes, triturando o osso, fazendo uma carnificina em cima do tronco. Enquanto batia, com raiva, sobre carne e osso, foi dizendo:

— Olha, seu Tonico, minha mulher não gosta de conversa atravessada. (e tome pancadas de machadinha na coxa de boi) — Também não gosto de papo furado pra cima dela. (e mais machadadas violentas) — Prá mim, se ficar sabendo de alguma coisa, posso dar uma machadada (e mais pancadas na coxa do boi, agora uma massa informe e sangrenta) na cabeça de quem se atrever.

Tonico ficou ali, de pé, assustado, sem ter como retrucar. E o açougueiro prosseguiu:

— O senhor tá ouvindo? Não fica com essa cara de boi sonso, fingindo de surdo.

O sapateiro pareceu acordar de um pesadelo.

— O que é isso, seu Emídio! Tenho o maior respeito pelo senhor e pela senhora sua esposa.

— Pois é isso! — finalizou o açougueiro, machadinha em punho, fitando os olhos do sapateiro. — Respeito é bom e eu gosto!

Nunca mais Tonico Sapateiro botou os pés no açougue de seu Emídio.

Mas o tempo passou e como na cidade pequena não havia segredos nem mistérios, Emídio ficou sabendo que a mulher lhe punha chifres — e justamente com o sapateiro!

Estava no açougue quando alguém lhe soprou a notícia. Antes mesmo de falar com a mulher, partiu pra sapataria, machadinha em punho, a cumprir a ameaça feita há tempos. Ao chegar à sapataria, encontrou-a fechada, com aviso na porta informando que “estava fechada por motivo de luto”. O sapateiro havia morrido de repente.

— Filho da puta! — O desgraçado foi morrer logo hoje, quando descobri que estava me botando chifres.

A raiva era imensa.

— Mas não importa que esteja morto. Minha vingança ninguém tasca. Vou cortar sua cabeça antes de ser enterrado.

E partiu, machadinha na mão, para o cemitério.

O corpo estava no necrotério. Deitado num mesa de mármore. Frio, Duro. Solitário. Ninguém pra velar.

Emilio levantou a machadinha pra decepar a cabeça, mas então outra ideia lhe ocorreu.

—Vou dar uma surra nesse desgraçado, antes de cortar pescoço. Prá ele aprender, mesmo depois de morto, a respeitar mulher dos outros.

E começou a dar tapas e sopapos, safanões e murros no corpo. Levantou o corpo, deu porradas até que o corpo amoleceu e... Tonico Sapateiro acordou do ataque de catalepsia que havia sofrido. O médico confundira tudo e errara no diagnóstico.

Abrindo os olhos, espantado e espantoso, perguntou ao homem que lhe espancava:

—Uai, seu Emídio, que foi que aconteceu? Por causa de que o senhor tá tão brabo?

Agora, quem parecia estar acordando de um pesadelo era o açougueiro. Saiu correndo, gritando como um doido. Não passou nem em casa nem no açougue, fugiu, saiu pela estrada afora e sumiu pela morraria de Minas.

Nunca mais foi visto.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 21 de junho de 2012.

Conto # 730 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/03/2015
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