718-ZÉ MACACO E A FOLIA DE REIS -
—Estamo esperando o sinhor. A festa já tá marcada pro dia seis.
O convite era irrecusável. José Marcolino, pequeno sitiante em Jataiaçú. Meu amigo de longa data, me queria presente na sua casa no dia seis de janeiro, quando ele e a família iam receber a visita da Folia de Reis.
Confesso que mesmo tendo passado minha infância e meninice no interior de Minas, nunca tinha assistido uma visitação da folia de reis. Morava na cidade e a folia percorria geralmente o interior , visitando as propriedades rurais, fazendo poucas aparições nas cidades, e ainda assim, apenas na periferia, nos bairros mais distantes do centro.
No dia marcado, lá estava com minha câmera, olhos e ouvidos bem atentos para observar os mínimos detalhes da festa. Havia muitos convidados e outros iam chegando. Enturmado com alguns amigos e com conhecidos da hora, fui perguntando e obtendo informações sobre a Folia de Reis.
Um dos presentes, conhecido da hora, por nome Alceu, parecia ser bem entendido sobre o evento e prestei atenção no que dizia.
—É uma “festa” tradicional nas regiões do interior de Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia , Goiás.. Celebra a visita dos três reis ao recém-nascido Jesus, que a gente festeja hoje, seis de janeiro.
—Hoje é domingo, é apropriado. Mas e quando não cai no domingo?
—Antigamente, era dia santo de guarda, ninguém trabalhava. E até hoje, quem é devoto da festa, respeita a data e não importa o dia da semana. Mas as visitas da folia aqui na região vão até no dia vinte de janeiro. Para quem é devoto dos Santos Reis, não é só um dia, não senhor.
Mais gente chegava a toda hora. No terreno defronte à casa de morada haviam enfeites e locais marcados. A Entrada estava marcada com um arco de bambu, de uns dois metros de altura, enfeitado com folhas de palmeiras e flores. Um redondo de três metros de largo estava marcado, e a porta da casa também estava muito enfeitada, com bandeirinhas, flores, folhas e fitas coloridas.
Ao lado da casa, em um galpão grande, estavam postas as mesas com as comidas que seriam servidas aos membros da folia e aos convidados. Sob toalhas brancas notei os contornos de enormes panelas e travessas.
Pelas cinco horas, começamos a ouvir os sons da folia, que descia pela estrada. Fomos todos para a porteira. Alinhamos ao longo de um linha imaginária , a passagem para a Folia.
Zé Marcolino e a mulher, dona Etelvina, ficaram de pé, na entrada, para receber a folia e a bandeira.
Então, vi a Folia. Na frente, vinham três figuras humanas vestidos de cores berrantes, roupas brilhantes e máscaras que envolviam a cabeça e escondiam o rosto. Um mascarado vestia roupa amarela, outro vestia traje vermelho e o terceiro, um roxo chocante. As máscaras eram assustadoras: feitas de couro mal curtido, tinha dois furos para os olhos, chifres no lugar da testa, e sobre a boca, bigodes e barbichas coloridas. Acima, na cabeça, tufos de pelos (crina de cavalo?) coloridos, colados nas laterais, fitas largas de papel crepom em muitas cores dissonantes. Atrás, rabos satânicos.
—Esses são os mascarados. Representam os soldados do rei Herodes, à procura do menino Jesus.
Os mascarados pulavam, faziam trejeitos, avançavam contra a multidão, soltavam sons cavos, urros, gorgorejos. Um espetáculo pavoroso para muitos. Algumas crianças choravam de medo.
Os mascarados foram de um lado a outro, entraram pelo galpão das comidas, olhavam os cantos, sempre pulando e gritando. Como não encontraram o que procuravam, voltaram e ficaram no círculo que estava previamente marcado no chão.
Foi então que começou a cantoria da Entrada: um conjunto de violeiros, tambores, sanfona, uma rabeca, pandeiros iniciou a cantoria, apresentando a Bandeira aos donos da casa e pedindo permissão para entrar.
A cantoria é típica: O chefe da folia faz o solo, e é respondido por um coro de todos os instrumentistas, que começava num tom baixo e terminava numa toada muito alta, estridente.
O Dono da casa respondeu, cantando no mesmo tom, concordando com a entrada da folia. Então recebeu a Bandeira: um estandarte quadrado, com uma tela dos Santos Reis, muito enfeitada de flores de papel ou plástico, fitas de todas as cores.
Formou-se então uma procissão: os donos da casa foram na frene, conduzindo a Bandeira, seguidos pelo membros da folia, que não paravam de cantar, e pelos convidados. Os mascarados permaneceram no círculo, como que esquecidos.
Na sala de visitas havia já uma armação de bambus, na qual foi colocada a bandeira. Foram cantados mais três ou quatro cantos, todos no mesmíssimo tom e na mesma toada, alguns com palavras ininteligíveis.
Em seguida, todos desfilaram perante a Bandeira, beijando a bandeira ou s fitas, com muito respeito. Sempre ao som do grupo da Folia.
Quando todos prestaram a homenagem a Bandeira. Foi uma hora de agradecimentos, cantigas, conversação (muitos convidados impacientes, pois já beirava as sete da noite.
Enfim, a hora do banquete, que, ritualmente, é uma oferta dos donos da casa aos membros da Folia, como que um presente, participado com todos os convidados. As toalhas foram retiradas, revelando as iguarias: costela de porco (uma panela que mais parecia um tacho, talvez de uns cem litros de capacidade), arroz, feijão tropeiro, tutu, jiló, mandioca frita, quiabo, abobora e moranga, carne de boi, rabada, creme de milho coberto com carne moída, milho cozido, enfim, um cardápio de calorias extremas.
Bebidas diversas: refrigerantes, algumas cerveja, uma garrafa de pinga circulou entre os homens, e um garrafão de vinho estava aberto na cabeceira da mesa.
O pessoal revelou-se educado e comedido. Não vi nenhum exagero, nem ninguém atropelando n hora de se servir. Comemos até dizer chega! Também não houve exagero nas bebidas.
— Alem de devotos, os convidados são muito educados. — comentei com o meu “guia” Alceu.
— Somos todos devotos dos Santos Reis, e esta reunião é para nó muito importante. Devemos respeito à Folia e aos Santos Reis.
— Fiquei impressionado com os mascarados.
— É, eles também são importantes. Depois que terminar o banquete, eles vão dançar, dentro daquele redondo. Dançam catira e sapateados.
Enquanto esperava pela dança dos mascarados, Alceu me contou:
— Os mascarados são feios, sim. Representam o mal, o diabo. Assustam até gente grande, e as crianças choram de medo. Mas teve uma vez que um garoto até gostou dos mascarados. Foi quando um dos mascarados da folia era o Zé Macaco, que já morreu. Zé Macaco tinha esse apelido porque era feio como um macaco. Fazia um dos mascarados. No causo que lhe conto, o garotinho de três ou quatro anos não ficou com medo dos mascarados, e até entrou no círculo onde eles ficam. Zé Macaco pegou o garoto no colo, e deixou que o menininho afagasse sua mascara, as fitas coloridas e os cabelos estufados. E querendo ainda mais agradar o menino, para mostrar que ele não era bicho nem capeta, Zé Macaco tirou a máscara.
Ao ver o rosto do Zé Macaco, o menino levou o maior susto da tamanha feiura. Aí, sim, ficou com medo e disparou num berreiro sem fim. E só parou de chorar quando o Zé colocou de novo a horrível mascara.
Zé Macaco, de rosto limpo, era muitas vezes mais feio do que usando a máscara da Folia de Reis.
Antonio Gobbo
Belo Horizonte, 7 de maio de 2012
Conto # 718 da Série 1.OOO HISTÓRIAS