715-A MULA SEM CABEÇA DE ITATURAMA- Folclore

— Estou falando pro sinhor, que é escritor de causos, mas num gosto de contar prá ninguém. Estão me chamando de mentiroso e tem gente que acha que tou ficando doido. Com estas palavras Tião Mocalé, guarda noturno de Itaturana começou a me contar sua versão das aparições da Mula Sem Cabeça na cidade.

E prosseguiu:

— Sou guarda noturno aqui no centro da cidade. Começo a ronda aí pelas nove horas da noite e só acabo de manhãzinha, quando clareia o dia. De uns tempo prá cá, começou aparecer uns clarão pelas ruas, que fui perseguindo até que descobri o que era. Aparição da Mula Sem Cabeça. No começo, tremi de medo. Seu que nada acaba com a Mula, ela num morre, Só desaparece quando a pessoa que ela é, de verdade, morre.

— Você sabe que a Mula Sem cabeça só aparece aqui por essas morrarias de Minas Gerais? — perguntei ao vigia, a fim de animar mais a narrativa.

— Tô sabendo agora, pelo que o sinhor tá falando. Mais a mula daqui aparece toda sexta feira na semana de lua nova. Quando a noite tá bem escura. Então é aquele fogacho em cima de quatro pernas, zurrando, correndo pelas ruas, tirando faísca das calçadas com as ferradura, e botando fogo em macegas e nos pastos da região.

— E onde é que ela esconde?

— Ela aparece por trás daquelas árvores que o senhor tá vendo aqui, logo na frente do Orfanato. E quando volta, entra por ali e some. Sem deixar nenhum rastro.

Olho n direção apontada pelo Tião Mocalé, um preto alto e magro, de metro e oitenta. A carapinha branca. Deve ser muito idoso, pois dizem no interior que “preto quando pinta tem mais de cento e trinta”, ou seja, negro de cabelo branco é velho prá chuchu. Vejo, atrás, o edifício de dois andares, imponente, com muitas janelas, em cuja fachada se lê ORFANATO FEMININO DOUTOR LEMOS LENTO

— É defronte o Orfanato.

— Pois é. Falei cum o doutor delegado, que é meu patrão, mas ele disse que em tava vendo coisas. Falei com uns amigos, que me acharam que eu tava bebendo durante o trabalho. Intão, parei de falar. Mas que ela existe, existe sim.

Ele coça a cabeça, dá uma cusparada , e parece se lembrar de alguma coisa.

—Ah, falei com a Zefa das Ervas, ela é sabe de tudo de prantas do mato e coisas de mistério. Foi a única pessoa que me acreditou. E me explicou direitinho cumo que é a Mula Sem cabeça.

— Que foi que ela te contou?

— Disse que ela aparece em casa onde se ajunta mais de três mulher com nome de Maria. Se num lugar tiver dormindo três Maria, uma tem de dormir amarrada, senão elas ajunta tudo em uma só e vira a Mula Sem cabeça.

— Então tem alguma casa por perto em que existem três Marias?

— É no Orfanato das Meninas, que o senhor tá vendo: Lá tem duas menina por nome Maria, além da diretora, a Madre Maria da Conceição;

— Então...? – cutuquei a conversa.

— Então eu falei cum o seu vigário, que prometeu vir aqui na praça jogar água benta no meio das árvores. Mas cada vez que ele ameaça de vir, acontece uma coisa. É um taque de asma, ele sofre desse mal, ou a visita do seu Bispo, ou então outra coisa que impede o vigário de vir aqui.

— Mas o senhor já me disse que a Mula desapareceu?

— Pois é, já fais mais de seis mês que ela não aparece...

Tião Mocalé fica reticente, parece que vai parar ou que está com receio de falar. Dou outra cutucada no assunto:

— Sumiu assim, sem mais nem menos?

— Oia, agora, o que vou contar pro senhor fica só entre nois dois.

— Pode ficar tranqüilo.

— Quem me contou foi a Terezinha, uma mocinha muito espevitada, que trabalha como faxineira no Orfanato. . Ela me disse que faz algum tempo que a diretora, a Madre Maria da Conceição, quando chega a noite da sexta feira da semana da lua nova, ela pega a Maria Celina, uma menininha de quatro anos e dá um chazinho de flor de maracujá, leva ela pro seu quarto na clausura (um lugar que só as freiras entram) e quando a menina dorme, a madre amarra a menina com umas fitinhas bentas. Aí, conforme a veia Zefa das Ervas falô, a mula num tem jeito de incorporá as três Maria... e eu nunca mais que vi a Mula Sem Cabeça.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 20 de fevereiro de 2011

Conto # 715 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 17/03/2015
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