Faca No Bucho
Eu podia ter mandado o sujeito pra outras bandas. Não as bandas conhecidas de gente viva, mas, as bandas que ninguém quer conhecer. Falando de modo direto e sem rodeio, pois, não sou home de rodeio, falo no talo, na cara do sujeito pra não ficar mal entendido. Mas naquele dia, resolvi que não ia mandar aquele sujeito pra terra do além. Naquele dia eu estava com nosso senhor Jesus no coração, que eu já estava logo querendo mandar embora, porque não sou homem de ficar ladainhando por ai. Comigo é logo faca no bucho!
Mas, para que a coisa não fique desentendida, quer dizer, que fique entendida como estou dizendo, vou logo avisando ao afoitos, aos mequetrefes, que não sou homem de inventar valentia. Não gosto de gente que inventa valentia, mas que quando a coisa aperta, nem lá passa vento, de modo que eu não sou desses. Comigo, é dito pelo acontecido, não o acontecido pelo dito. Apois, caboclo que sou, e honrando meu pai (que nosso senhor o tenha) e antes dele, meu avô e tios, aprendi que quem inventa valentia se borra todo quando o perigo se aproxima. Conheço um monte desses. Vocês também devem conhecer. Dizem que galo que canta alto, quando está na rinha, bota ovo e cacareja que nem ganinzé espantado.
Entonces a coisa se deu assim: lá pelas bandas donde a curva encontra o vento, desde que o mundo ouviu o primeiro choro da primeira alma viva que aportou nesse mundo, não se fala noutra cousa. A cousa pode variar um bocadinho, mesmo porque, cada um observa com seus olhos e nenhum zóio é igual, não é mesmo? Uns olham de retidão, outros enviesado, tem os que olham de lado, desconfiado, de modo que, dependendo como se olha, a cousa muda também. Muda o tom, o talo, cresce ou diminuiu de tamanho. Mas eu garanto, o que vai adiante, segue conforme o acontecido, nem mais, nem menos.
Entonces, desde que eu era pequenininho, ouvia meus pais e tios dizê que nas bandas donde a curva encontra o vento, habitava, numa casa de palha, uma velha bem feia. Falavam que era tão feia, que urubu parecia uma arara. Mas não é isso que importa. O que importa é que de tão feia que era, a velha morava sozinha. Viveu ali por mais de 60 anos. Gente morria, nascia, morria e a velha ali, vivinha da silva. Nunca pegou um chiado de peito, tossia porque fumava seu cigarro de palha, mas, fora isso, nunca que ficou doente. A bicha tinha uma saúde ferro. Gente bem mais jovem vivia com pereba, peito estorando de catarro, pé bichado; a velha não. Não tinha nada, quer dizer, nada não, nada que não fosse doença. Ela tinha uma bolota, uma verruga, bem no meio da testa. Era uma verruga tão grande, tão vistosa, que se colocasse uma luzinha, daquelas que os homens usam quando estão numa caverna, dava para iluminar toda redondeza. De modo que a velha, mesmo à noite, era vista andando pela mata, fosse noite calma ou de reboliço, a velha sempre saia pela mata. E dai, não demorou muito para aparecer gente que dissesse que a velha não era gente. Que era uma mistura de cruz credo com lobisomem. Que nunca ninguém tinha visto ela de dia porque essas coisas, essas assombração, só aparecem de noite. Não sei. Mas ainda agora lembro que quando eu tinha 12 anos, eu e mais 3 primos, revolvermo ir investigar aquela história de que a velha não era gente. Resorvemo que naquele dia, pondo fim a uma sandice sem tamanho, resorvemo que naquele dia as coisas iam ficar preto no branco. Resorvemo, para salvaguarda da cidade, que naquele dia, todo aquele reboliço de tantos anos, fosse colocado em pratos limpos, que a história da velha não era verdade, que não tinha assombração, essas coisas de sandices descabidas. Que a velha até podia existir, mas, esse negócio de assombração, já era demais.
Entonces, eu, mais Zezinho, Dinda (uma prima nossa espivetada que só) e Luizinho, fomos para a missão que a gente deu pra gente. Nós, como disse, resorvemo que, naquele dia, de uma vez por todas, a gente ia desvendar aquele história que aquela velha não era gente. Tinha gente que falava que ela era dessas que gostava de falar com os espíritos, que fazia uns negócio com penas de pássaro, bucho de bicho. Entonces, saímos bem cedo em direção a mata. Lembro que cheguemo lá bem cedinho. Entremo pela mata. No começo, a estrada que se formava pela folhas secas que caiam das árvore, parecia que a gente estava pisando em cascas de ovos. Em cada punhado de folha que a gente pisava, fazia um estribilho de folha se quebrando, e os animais, mormente os pássaros, sumiam todos. De modo que a gente não via um pássaro, uma aranha, um nada de vida. E assim, a gente, eu, Zezinho, Dinda e Luizinho, sem saber, sem perceber que a gente já tinha andado por horas, não reparamos que quando vimos a casa da velha, já era noite. E também porque Luizinho, que sempre foi de ouvido bom, percebeu o silvo da coruja. E não é que lá pelas altas horas, nois vê a porta da casa da velha se abrindo. No começo a gente ficou com medo, não vou mentir, mas depois, lembrando que aquela história já tinha mandado à vergonha muito homem que esbravejava coragem, nóis não podia sair dali correndo. Primeiro porque não sabíamos como sair dali, depois, porque nois não ia querer cair na desgraça de ser chamado de froxão. E vocês sabem, home que cai na desgraça de ter sua pessoa ligada a froxão, é pior que boi que nega fogo no curral.
Entonces, nois que não sabia sair daquela escuridão, revorvemo ficar. Revorvemo que a gente ia passar à noite ali mesmo. Luizinho, que era bom de ouvido, mas, nem tanto na coragem, se pôs a soltar umas lágrima. Zezinho, que nunca abria a boca pra nada, parecia um mudo, de repente, sem mais nem menos, entrou num berreiro que se fosse um campeonato de futebol, o juiz ia dar a vitória para ele, só para não ter aguentara aquela choramingueira toda. Dinda, essa sim, pequenina no tamanho, braços finos, cabelos curtos, se pôs de pé, naquela escuridão que dava arrepio, e sem esboçar um único, um mínimo sinal de medo, pega os dois pelo braço e lhes dá uma sova. Fala pra eles que se comportassem como home, que se ficassem daquele jeito, a velha podia ouvir e ai, disse ela, nem vai saber quem ela é, porque ela não vai sair e nois não vamos saber como ela é. Dito isso, deu-se o silêncio.
Não sei quanto tempo passou, mas o que lembro, é que lá pelas tantas a porta se abre e de lá sai a velha. No início, por causa da escuridão, não deu para ver direito, mas, como a gente estava meio perto, meio longe, deu para ver que era uma pessoa baixa, cabelos cumpridos. Parece que vestia roupa preta, quer dizer, saia e brusa preta, e na cabeça um lenço que deixava um rabo-de-cavalo pra fora.
Ficamos ali, imóveis, tão imóveis e quietos que dava para ouvir a respiração e as batidas do coração do Luizinho. Zezinho, como disse, era bem quieto, mas, naquela noite, ficou tão quieto, tão em silêncio, que eu e Dinda pensamos que ele tinha batido com as 10.
A noite foi avançando. De repente, a porta se fecha e não vimos se entrou ou não alguém na casa. Mas, quando o sol já dava seu primeiros sinais de vida, a escuridão, que já não era tão escura assim, foi dando lugar para o dia. Aqui e acolá, a gente ouvia um pássaro, um galho que balança. Parecia que a vida ia tomando seu reinado; parecia que os animais e as plantas tinham acordado para que o ciclo da vida seguisse seu caminho.
Entonces, e não foi que de repente, sem que ninguém soubesse donde apareceu, porque antes não ouvimos ninguém, nem nada, se aproximando, eis que um grito cai sobre nois. Tirando a Dinda, que ficou numa posição de luta, os outros, saíram numa disparada que parecia que tinha pavio aceso nos fundilhos. Corremo tanto, mas tanto, que Luizinho, que era bom de ouvido e de perna, passou pelo seu Zeca, o entregador de leite, que fez ele cair, tanta era sua velocidade. Zezinho, coitado, que puxava duma perna, correu tanto, que quem o visse naquela correria ia achar que tinha acontecido um milagre porque as muletas ficaram pelo meio do caminho. Eu, não vou mentir, fiquei com um pouquinho de medo, mas não podia largar a Dinda lá, sozinha, então resolvi que ia ficar com ela. Mas ai, me deu uma tontura, uma vertigem, que quando sai da mata, ainda meio tonto, fiquei sabendo que o susto que passamos lá dentro fora provocado pelo Bernardo, um sujeito metido a prayboy, que foi até lá só para sarriar com a cara da gente. Tente gente que fala que a Dinda ficou tão furiosa que deu um corretivo no sujeito, que o pai e a mãe dele foram falar pro delegado. Não deu nada, porque o delegado além e ser um sujeito correto, deu uma bronca no prayboy. Não vou desmentir o dito, mas daquele dia em diante, a Dinda passou a ser a menina mais temida da nossa região, mesmo porque, o sujeito, que deu susto na gente, dizia pra todo mundo que luta um tal Jiujitissu, então era brabo mesmo, mas com a Dinda não foi não.
Entonces, naquele dia eu vi que Deus existe. Pois, se não existisse e eu não estivesse com Jesus, nosso senhor, no coração, naquele dia, eu ia rasgar aquele sujeito. Eu ia tirar os bucho dele com a unha. Mas, naquele dia, eu estava com Jesus, nosso senhor, no coração, entonces, resolvi que não ia fazer nada. É por isso que, desde aquela dia, nois, eu, Zezinho, Dinda e Luizinho, não falamos mais sobre a velha feia. Não falamos porque não conseguimos descobrir se ela existe ou não. Também combinamos que nunca mais a gente ia pra lá.
O fato, narrado e mantido tal qual aconteceu, é esse. Nem uma linha, nem um ponto, nem uma virgula sequer, foi colocada ou aumentada. O fato é esse. Não estou contando valentia, nem gosto disso, mas, que a coisa se deu exatamente assim, isso eu posso garantir. Quanto a velha feia, como disse, nunca mais fomos lá, mas, que ainda se ouvem assombrações isso sim, que a casa continua igualzinho como naqueles tempo, afirmativo. Quer dizer, isso é o que dizem, porque, nunca ouvi ou vi alguém que tenha ido lá e visto a velha. Tem gente que fala que a casa nunca é vista de dia, que tem gente que já tentou ir lá de dia, mas quando chega perto da casa já é noite, entonces, não vou dizer que não é assim, entones eu conto como ouvi. Mas, como sempre digo, como não sou home de ladainha, quem disser que as cousas se deram de outra maneira, aviso, pense bem, porque, quem fala sobre o que não viu, é faca no bucho.