Morto e bem morto!

«Fujam, fujam que aí vem o “Perna Marota”!»

O grito de alarme fora dado por um dos rapazes. Nem o ribombar de um trovão em dias de trovoada surtiria maior efeito do que aquele brado. Como um bando de pardais assustados era cada um por si, correndo o mais que podiam. Jorge o mais pequeno dos rapazes, não tinha ainda o traquejo dos mais velhos, todavia, disparou com ligeireza, atrás dos outros, sem olhar para trás.

Anselmo procurava aconchegar-se na penumbra da sua varanda de modo a ver e não ser visto. Sim, tinha prometido a si mesmo que apanharia os larápios que todos os anos faziam uma espécie de peregrinação ao seu terreno, palmando os seus lindos pêssegos de São João. Tentara mil e um estratagemas para que não os comessem, desde a sulfate, a aviso que tinham veneno, mas nada resultou. Chegou a pôr um aviso dizendo que dava se lhos pedissem, mas aquela canalha endiabrada não ia na conversa. Hoje apostara que lhes havia de pregar um cagaço para recordarem toda a vida. Para isso carregara uns cartuchos só com pólvora para os assustar.

Ainda não tinha corrido cinco metros quando o Jorge ouviu um estrondo de espingarda. Era demais para o pequeno larápio, iria morrer por causa de uns míseros pêssegos «maldita a hora que fora na conversa do capitão». Numa réstia de coragem galgou um pequeno arreto e ainda olhou para trás para ver se o “Perna Marota” vinha perto. Subitamente sentiu uma forte dor na garganta…

Anselmo viu os três rapazes chegarem de mansinho. Conhecia bem os três, o “capitão” um ratoneiro de primeira, o “zarolho” outro gatunozito da mesma igualha. Já o outro pequeno, surpreendeu-o porque sempre o dera como menino atinado e nunca se constara que andasse com aqueles dois.

Pé ante pé, foi se aproximando dos rapazes, quando a perna mais curta o fez tropeçar originando um ruido que pôs o bando em debandada. Correu atrás deles enquanto disparava a sua “menina”. Já não via os outros dois, mas vira ainda o mais pequeno saltar o arreto. Um som surdo e um estremecer das videiras avisou-o de que tinham chocado com o arame esticado do corrimão. Um esgar de contentamento foi rapidamente transformado em aflição ao ver o pequeno no chão inanimado.

Com o coração despedaçado, Anselmo viu um enorme vergão na garganta do pequeno, maldizendo-se pela maldita ideia do tiro para os assustar.

- Como é que ele está senhor doutor? – Pergunta Anselmo com ar aflito.

- Não estejas tão preocupado Anselmo, amanhã o pequeno quase já não sentirá dores, mas podia ser o diabo e ter cortado a garganta ou mesmo arranjar um caso muito mais sério. – Respondeu o médico.

- Vá, não tenhas medo que eu não te faço mal. Pregaste-me cá um susto! Quase tão grande como quando fui quase enterrado vivo.

- Enterrado vivo?- Perguntou Jorge, já refeito do choque embora ainda com dores.

- Sim, meu pequeno. Teria mais ou menos a tua idade e apesar da minha perna mais curta, corria e saltava como qualquer garoto. Naquele dia, corri a empoleirar-me na camioneta da serração que abrandava ao subir a rampa do Calvário. Ao chegar quase ao cimo a camioneta quase parou ao meter uma mudança. Aquele movimento originou que um tronco rodasse e me empancasse contra o taipal. Sofri uma espécie de desmaio, porém, ouvia tudo sem contudo o meu corpo dar algum sinal de vida.

Chamado ao local do acidente, o velho doutor Joaquim que continuava a exercer e a embebedar-se todos os dias depois da morte da esposa. Devia estar ébrio pois ao ver-me disse: «Nada a fazer, este, está morto e bem morto». Fui metido num caixão e ainda hoje me interrogo porque não morri de pavor, ouvindo os meus pais a chorar e sabendo que no outro dia seria enterrado vivo. Sim vivo! Ouvia toda a gente no velório, mas lá estava inerte, sem sequer conseguir abrir os olhos. Foi uma noite angustiante. Só ouvia e pensava que estava a poucas horas de ser enterrado, porque segundo médico eu estava morto e bem morto. Sentia medo e sentia raiva por ninguém se aperceber que estava vivo. Todo eu era um choro aflitivo que ninguém ouvia.

- Mas como é que escapou de ser enterrado? – Pergunta Jorge, aterrado com a história.

- Foi já na altura em que estavam para fechar o caixão, a minha mãe num último adeus beijou-me nos olhos, como sempre fazia quando se despedia. Levantou-se com um grito ao sentir os lábios húmidos, e gritou que os mortos não choram. Dali fui para o hospital, e o resultado é estar hoje a contar-te a minha história do morto vivo.

Lorde
Enviado por Lorde em 09/03/2015
Reeditado em 09/03/2015
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