As Lavadeiras
Tempos idos e saudosos aqueles em que a boiada, extensa, passava ao longo da rua São Miguel, vindo dos lados do açude, rumo ao Cordeiro, para pegar a estrada onde hoje é o nosso aeroporto. Não raro acontecia isso, e podia-se ficar mais de hora olhando a boiada, que pegava a largura da rua inteira, rua ainda descalça, sem meio-fio, sem calçadas, sem falar daquele punhadão de lotes vagos entre as casas sem muros.
E lá iam os cargueiros à frente, cargas enormes, com os trens dos peões de boiadeiro, os polaques barulhentos a alertarem a criançada de longe, avisando que a boiada vinha passando; o berrante melodioso a solar "Morena bonita", compassado, no passo dos animais, pra depois dar aquele chamado forte, grave, prolongado no início e repicado em seguida. E o tocador, imbuído na cantiga, face empinada para o céu azul, o sol na cara, o chapéu de couro jogado nas costas. Bonito! E a peonada gritando, girando as pinholas cheias de argolas, estalando-as no ar, e a poeira levantando-se sob os pés da boiada, bela boiada. Quantos pés! Dava até para embaralhar as vistas. E justamente essa poeira que fazia as donas de casa correrem ao varal, a tirar a roupa lavada, ainda escorrendo água, outras quase enxutas, livrando-a do pó fino e vermelho. Uma tinta! E a garotinha lá, sem medo algum, sentada na soleira da porta da sala, fechada por dentro, na taramela, a pispiar aquele punhadão de boi. Toda vez era assim, e precisava de a mãe correr para tirá-la de lá, antes que alguma coisa de ruim lhe acontecesse. Era o divertimento da criança, pois naquele tempo - graças a Deus - não existia a tal de televisão com tanta coisa feia pra ensinar à garotada. A boiada era o cinema, a história imaginada, os rincões de além fronteira; se bem que seu mundinho era tão pequenino! A fronteira estava logo depois da casa da vovó, daquele quintalão que ia para no "corguinho". Passada a boiada, era aquele silêncio profundo, só um sabiá cantando no cajueiro do quintal.
Bom mesmo era no mês de agosto, tempo de muito vento. A última rua era a Avenida Araguaia, uma estrada estreita ainda, com sua linha telegráfica ladeando-a. Acima, só o cerrado, pasto, uma cerca de arame farpado separando-o da cidade. Ali naquela cerca comprida as lavadeiras de roupa, que lavavam e passavam para os outros, os mais ricos da parte baixa da cidade - onde havia calçamento de paralelepípedo nas ruas -, ali elas estendiam as roupas para secarem ao sol. Ah! meu Jesus! Quando ventava, quando dava aquela ventania de mês de agosto, cada rodamoinho que levantava poeira e folhas secas ao céu. Acontecia que, ao vir um desses, subia roupa junto, roupa de tudo quanto era jeito - vestidos, saias, combinações, calças, camisas, e até roupas da maior intimidade, vejam só - tudo exposto ao vento, no céu vermelho. Só se ouviam gritos, xingatório, e as pobres lavadeiras correndo atrás das roupas de seus patrões. Aquilo misturava tudo, meu Deus do céu, e ia cair lá pros lados do campo de aviação. Era roupa pendurada em galho de árvore, roupa rasgada, tudo sujo, que tinha de voltar pras bacias, pro batedouro de roupa, e lá ia mais bola de sabão preto, feito em casa com soda, toucinho e "diquada". Muitas vezes o prejuízo era grande. Algumas senhoras, as patroas, ficavam enfurecidas com as coitadas das lavadeiras, mas o que fazer, se era tudo culpa do vento? Fora isso, a ventania, ficava até bonito, aquela roupaiada estendida cerca afora, tudo colorido. Embaixo as roupas, e, em cima, no céu azul de agosto, sem nuvens, as pipas, os papagaios multicores, voando ao sabor do vento, e a meninada correndo pelas ruas, rindo, gritando, passando apuros na hora de um vento mais forte, e muitas vezes sujando as roupas estendidas na cerca de arame farpado da Avenida Araguaia.
Era divertido aquele tempo. Havia paz nas cidades do interior, havia trabalho para essas mulheres, profissionais do sabão de bola, profissionais do batedor, do balde d'água na cisterna funda. Havia trabalho para a peonada, para toda a comitiva, entre os quais até cozinheiros; havia gosto de se ouvir um berrante tocando na frente da enorme boiada, sem precisar ir às festas de peões, festas agropecuárias, ou na televisão, numa novela ou noticiário. Hoje, a gente só ouve as histórias de nossos pais, de nossos avós, pois a maioria nem chegou a conhecer tudo isso. Hoje, até os nomes das ruas são diferentes. E no lugar onde existia a cerca de arame farpado, onde havia um cerrado com árvores pequenas, há praças, avenidas e sobrados. E quem é que hoje sabe o que vem a ser um linha telegráfica? Cargueiro, o que é isso? Comitiva? Até o sabão de bola, preto, hoje é quadrado e branco. As roupas são lavadas em tanquinhos, e já não se ouvem as pancadas das roupas nos betedouros, ao longe, ecoando, ecoando. E a morena bonita na janela, olhando a boiada, a escutar o berrante tocando (talvez pra ela), sonhando acordada, hoje é uma empresária.
Tempos idos e saudosos aqueles em que a boiada, extensa, passava ao longo da rua São Miguel, descendo para os lados do cemitério, sumindo na curva juntamente com a cantiga do berrante, com sua linda telegráfica. Tempos idos e saudosos aqueles, que hoje é apenas um ponto de saudade na história da Cidade dos Pomares.