675-A VOLTA DO QUE NÃO FOI - Velório frustrado
A Morte, quando se apresenta é sempre um fato doloroso e na maior parte das vezes, inaceitável pelos parentes. Mesmo que o falecido ou a falecida sejam idosos ou padeçam de doença em estado terminal. O que é um verdadeiro renascer para outras dimensões ou uma porta de acesso para a continuidade da jornada da alma ou do espírito torna-se algo como uma desgraça que se abate sobre todos, os vivos e o morto.
Seu Manoel Cabralino havia completado oitenta anos a pouco mais de um mês, quando reclamou à mulher na noite de um agourento dia 13:
— Maria, tou sentindo um cansaço arretado. Me prepara um chá de ervas...
E desmaiou ao lado da esposa, já deitada e fazendo as orações antes de dormir.
Assustada e desorientada, correu até a casa ao lado onde morava filha.
— Selina, depressa, acode seu pai que desmaiou na cama. — Gritou enquanto esmurrava a porta da frente da casa onde morava a filha.
Selina apareceu de camisola, com o marido Eliseu. Correu atrás da mãe. Ao ver o pai respirando com dificuldade, sentiu-lhe o pulsar e ouviu o coração. Era professora e tinha alguma noção de primeiros socorros, pelo menos para com seus alunos.
Determinada e sentindo a gravidade da situação, falou com o marido:
— Pega o celular e chama a ambulância.
A ambulância do Serviço Municipal de Saúde atendeu com presteza. Chegaram ao pequeno hospital em pouco menos de meia hora. Mas antes de qualquer providência, ainda dentro da ambulância, o médico de plantão disse:
— É um principio de infarto. Tem que ser atendido em hospital com mais recursos. Vamos aplicar um soro e vocês seguem para a capital. Vou chamar uma enfermeira da noite para ir junto.
A enfermeira foi na ambulância com o seu Manoel. Logo atrás seguiam Selina e Eliseu, num Fiat Uno.
Haviam percorrido uns três quilômetros quando a ambulância parou no acostamento.
— Meu Deus, alguma coisa ruim aconteceu. — Disse Selina ao marido, ao mesmo tempo em que abria a porta do carro e corria para a ambulância.
A enfermeira desceu pela porta traseira da ambulância e veio ao encontro de Selina, dizendo:
— Ele não agüentou. Teve outro enfarto e ... não resistiu.
Voltaram todos – ambulância, Selina e Eliseu – para o hospital da cidade. O pai foi encaminhado ao necrotério.
— Colocaram ele em cima da mesa, dentro do saco, e fizeram todo o procedimento. — Disse Selina. — Eu peguei o atestado de óbito, assinei a liberação do corpo e voltamos para casa.
E já foram avisando os parentes mais chegados.
<><><>
Era de madrugada, aquela hora sombria e fria em que se abrem as portas do sobrenatural.
— Ajuda aqui, Leco. Tá frio demais, vamos acabar com esse serviço rápido. — disse Carlim ao colega, ambos ao redor da mesa do necrotério.
— ÔH xente! parece que o difunto ai dentro do saco mexeu.— disse Leco.
— Deixa de sê besta, sô. Vamo, puxa o saco pelos pés.
Arrumaram o defunto: as mãos cruzadas sobre o peito: pequenos chumaços de algodão colocados nas narinas e na boca: os pés amarrados com um fino cordão para não ficarem abertos para os lados.
O defunto abriu um olho.
Leco sai correndo do necrotério.
Carlim olhou para o olho do defunto.
O defunto abriu o outro olho e piscou.
Carlim não se assustou. Já tinha visto coisas mais aterradoras. Tirou o algodão da boa e do nariz do homem deitado na fria da mesa de cimento.
Seu Manoel chupou o ar com a boca e o nariz, e expirou, fazendo um som cavo e aterrador.
<><><>
Parentes e amigos começavam a chegar e até outros dois filhos do aposentado, que vivem em São Paulo e no Espírito Santo, tinham sido avisados.
Porém, no lugar do carro da funerária, foi um carro da prefeitura que acostou na calçada. Desceu uma assistente social.
— Por favor, preciso que dona Selina devolva o atestado de óbito e volte comigo ao hospital.
São palavras da própria Selina:
— Quando cheguei lá, a médica disse que tinha uma notícia boa, que meu pai não tinha morrido e estava vivo. Foi aquela surpresa na hora e corri para ver meu pai.
Na casa, ainda sem saberem da “volta do que não foi”, isto é, do retorno de seu Manoel Cabralino ao mundo dos vivos, preparavam-se para o velório. Uma cama havia sido colocada na sala. A viúva vestiu um vestido azul marinho e alguns homens já estavam pela cozinha, namorando uma garrafa de pinga no alto da prateleira, para “beber o defunto”. Estes, de certo, ficaram decepcionados quando chegou a notícia. A família, entretanto,alegrou-se e rapidamente desfez os preparativos para o enterro.
Amanhecia quando dois amigos deixaram a casa, frustrados por não haver velório.
— É, cumpadre, enquanto a gente pensava que o seu Manoel tava ido, ele tava mais era vortando.
— Vortando cumo, cumpadre, se ele não chegou a ir...?
ANTONIO GOBBO –
Belo Horizonte, 18 de junho de 2011
Conto 675 da SÉRIE MILISTÓRIAS