Sonho de criança **
Um qualquer Simon Simanov, a dormir profundo em sua cama não obstante o clarear das cortinas, é acordado finalmente pelo filho. O pequenino salta abrupto sobre a cama e achega-se, fazendo sacolejar as molas do colchão, chocalhando os miolos do pai, emergindo-o das entranhas de seda e algodão.
– Bom dia, papá! Sabia que essa noite eu sonhei com você, e que nós estávamos em uma corrida de cavalos, e choveu, e os cavalos corriam pelas montanhas, até que ficou de noite e nos perdemos a caminho da praia, onde íamos colher conchinhas para dar de presente à mamãe?
O pai reage demoradamente, realinhando o dorso, engalfinhando-se ainda mais no lençol, afundando o rosto no travesseiro, respondendo afinal com um resmungo tacanho e indecifrável, enquanto o menino vai reclinando seu rostinho curioso sobre um semblante afrouxado e sonolento.
– E com o que você sonhou essa noite, papá?
O homem estica o pescoço, arqueia as sobrancelhas e murmura que não se lembra, voltando a aconchegar-se na sua metade preferida do travesseiro.
– Nesse meu sonho – retoma o menino, estirando-se na outra metade, estufando a fronha como um balão, e olhando para o teto –, também estava a Carolina, e o Gustavo da minha escola, não o Gustavo Henrique, o outro Gustavo, o Gustavo Vinicius. Eles não andavam a cavalo. Eles tinham um navio pirata. Eles nos esperavam na praia, e tinham feito uma fogueira. Nós não chegamos a nos encontrar com eles porque, como eu disse, nos perdemos no caminho. Isso aconteceu porque uma velhinha que apareceu na nossa frente quando chovia era na verdade uma bruxa, e ela disse para a gente seguir por outro caminho, mas era o caminho errado, e então nos perdemos nas montanhas. Quando estávamos quase chegando à praia, um corvo voou de uma árvore e... – deteve-se –. Pai, o corvo pia ou canta?
– Grasna, eu acho... – sussurra o pai, abraçando o travesseiro.
– Então, o corvo voou de uma árvore e gra... garr… gas… Bem, talvez tenha sido um galo, que cantou, e aí eu me assustei, e então acordei, e no fim fiquei sem saber se você ou eu ia vencer a corrida de cavalos, e sem saber o que aconteceu com os meus amigos piratas, e sem saber como ia ficar a mamãe, sem as conchinhas dela.
O pai reage com um gemido de concordância.
– Tem certeza de que não se lembra com o que sonhou, papá? – inquieta-se.
– Acho que esta noite eu não tive sonho nenhum, filho – o pai responde enfim categoricamente, ainda de costas, tateando a mão para trás, meio que afagando a testa do pequeno.
– Que triste, papá! Nenhum sonho?!... Sabe o que você pode fazer? Toda vez que você acordar e não tiver tido nenhum sonho, faça como eu e apenas invente qualquer coisa para contar, como eu fiz hoje!
O pai escancara os olhos por um momento, e, deixando-os semiabertos, suspira, vai olhando para o filho de soslaio, e, revirando-se, detém-se naqueles grandes e redondos olhos, encarando-o de volta sorridentes, e que há cinco anos brilhavam, remelentos, todas as manhãs. O filho continua:
– ... Assim teremos sempre um assunto para conversar quando acordarmos, ao invés de só ter assunto quando já passou o dia.
O pai acena com um preguiçoso sorriso no canto da boca.
– Volte para sua cama, filho. É cedo. Preciso dormir mais um pouco. Quem sabe eu sonho com alguma coisa? – sugeriu Simon Simanov, que virou para o lado e fechou os olhos novamente, afundando na cama sem precisar saber se o filho ficara ao seu lado ou se fora. E após mais alguns indolentes minutos, acordou.
Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
(publicado em: Palavra é Arte-Narrativas, 2017)
Um qualquer Simon Simanov, a dormir profundo em sua cama não obstante o clarear das cortinas, é acordado finalmente pelo filho. O pequenino salta abrupto sobre a cama e achega-se, fazendo sacolejar as molas do colchão, chocalhando os miolos do pai, emergindo-o das entranhas de seda e algodão.
– Bom dia, papá! Sabia que essa noite eu sonhei com você, e que nós estávamos em uma corrida de cavalos, e choveu, e os cavalos corriam pelas montanhas, até que ficou de noite e nos perdemos a caminho da praia, onde íamos colher conchinhas para dar de presente à mamãe?
O pai reage demoradamente, realinhando o dorso, engalfinhando-se ainda mais no lençol, afundando o rosto no travesseiro, respondendo afinal com um resmungo tacanho e indecifrável, enquanto o menino vai reclinando seu rostinho curioso sobre um semblante afrouxado e sonolento.
– E com o que você sonhou essa noite, papá?
O homem estica o pescoço, arqueia as sobrancelhas e murmura que não se lembra, voltando a aconchegar-se na sua metade preferida do travesseiro.
– Nesse meu sonho – retoma o menino, estirando-se na outra metade, estufando a fronha como um balão, e olhando para o teto –, também estava a Carolina, e o Gustavo da minha escola, não o Gustavo Henrique, o outro Gustavo, o Gustavo Vinicius. Eles não andavam a cavalo. Eles tinham um navio pirata. Eles nos esperavam na praia, e tinham feito uma fogueira. Nós não chegamos a nos encontrar com eles porque, como eu disse, nos perdemos no caminho. Isso aconteceu porque uma velhinha que apareceu na nossa frente quando chovia era na verdade uma bruxa, e ela disse para a gente seguir por outro caminho, mas era o caminho errado, e então nos perdemos nas montanhas. Quando estávamos quase chegando à praia, um corvo voou de uma árvore e... – deteve-se –. Pai, o corvo pia ou canta?
– Grasna, eu acho... – sussurra o pai, abraçando o travesseiro.
– Então, o corvo voou de uma árvore e gra... garr… gas… Bem, talvez tenha sido um galo, que cantou, e aí eu me assustei, e então acordei, e no fim fiquei sem saber se você ou eu ia vencer a corrida de cavalos, e sem saber o que aconteceu com os meus amigos piratas, e sem saber como ia ficar a mamãe, sem as conchinhas dela.
O pai reage com um gemido de concordância.
– Tem certeza de que não se lembra com o que sonhou, papá? – inquieta-se.
– Acho que esta noite eu não tive sonho nenhum, filho – o pai responde enfim categoricamente, ainda de costas, tateando a mão para trás, meio que afagando a testa do pequeno.
– Que triste, papá! Nenhum sonho?!... Sabe o que você pode fazer? Toda vez que você acordar e não tiver tido nenhum sonho, faça como eu e apenas invente qualquer coisa para contar, como eu fiz hoje!
O pai escancara os olhos por um momento, e, deixando-os semiabertos, suspira, vai olhando para o filho de soslaio, e, revirando-se, detém-se naqueles grandes e redondos olhos, encarando-o de volta sorridentes, e que há cinco anos brilhavam, remelentos, todas as manhãs. O filho continua:
– ... Assim teremos sempre um assunto para conversar quando acordarmos, ao invés de só ter assunto quando já passou o dia.
O pai acena com um preguiçoso sorriso no canto da boca.
– Volte para sua cama, filho. É cedo. Preciso dormir mais um pouco. Quem sabe eu sonho com alguma coisa? – sugeriu Simon Simanov, que virou para o lado e fechou os olhos novamente, afundando na cama sem precisar saber se o filho ficara ao seu lado ou se fora. E após mais alguns indolentes minutos, acordou.
Publicado em “Mulheres e seus amores”, disponível aqui em formato E-Book.
(publicado em: Palavra é Arte-Narrativas, 2017)