EU VI...
EU VI...
O texto abaixo (EU VI...) é o início de uma Epopeia que escrevi sobre um Ipê-roxo que fica na entrada de meu Reino Encatado. No ano passado fomos a Idaiatuba encontrar com Tricin para comemorar seu aniversário. Foi quando uma rara tempestade, vinda do lado da Roseta (N) o deitou. Continua vivo e ainda com flores como determina a Natureza nessa época. Em homenagem ao centenário guardião de meu Reino, postarei aqui no RECANTO DAS LETRAS, a Epopeia por completo:
Eu vi...
Há não sei quanto tempo este vale coberto por uma densa floresta.
Era jovem e não sabia que as companhias eram importantes.
Eu vi o regato (Limoeiro) correndo com suas límpidas águas,
Repletas de peixes e outros seres que nem me importaram.
Eu vi tempestades que fustigavam nossas galhadas,
Mas que deixavam a nossa cobiçada terra, molhada...
Eu vi pássaros em bandos que só achavam mais importante
Que seu canto, as sementes e os frutos que saciavam sua fome.
Eu vi animais estranhos que pareciam nossos vizinhos símios,
Que não usavam os galhos como caminho para se deslocarem.
Eu vi esses animais portanto instrumentos que sacrificavam
Minhas companheiras e as afastavam de seu trajeto.
Eu vi esses mesmos animais, como por encanto,
Usar um instrumento que à distância,
Com um ruído envolto em fumaça,
Abatiam os animais que viviam na floresta virgem.
Eu vi depois que, em algazarra devoravam suas carnes.
Eu vi esses animais em grupo, cantando e se comunicando,
Abatendo a golpes, com estranhos instrumentos,
As minhas companheiras que caiam na ânsia da morte.
Eu vi, parece que por vingança, atearem fogo em seus corpos.
Eu vi que jogaram sementes e mudaram a paisagem.
Eu vi que trouxeram outros animais que não eram da floresta.
Eu vi nascerem arbustos que davam um rosado e ácido fruto.
Eu vi o regato, com sua águas cristalinas,
Receber o nome desse colorido fruto,
Num batizado simples e sem cerimônia.
Eu vi construírem estranhos abrigos ao longo do vale.
Eu vi que se multiplicavam e surgiam pequenos seres lindos,
Barulhentos, alegres e que pareciam inofensivos e felizes.
Eu vi uma linda adolescente com nome de Continente(América),
Montada em um cavalo ruzio e bem tratado,
Levar para esses seres do vale,
Algo maior que o significado de seu nome:
A Alfabetização como grande instrumento
Na aquisição do Conhecimento Humano.
Eu vi os grandes proprietários de terra se revezarem no poder.
Eu vi um caipira inteligente e de sabedoria
Passar esta propriedade para um banqueiro.
Eu vi, inacreditavelmente, este banqueiro lotear a propriedade
E fazer uma reforma agrária doméstica, sem os entraves da Lei,
Vendendo lotes a pequenos lavradores a longo prazo.
Eu vi um destes lavradores, semi analfabeto, mas sábio,
Conhecedor de uma incipiente matemática e, de posse
De uma corrente de arame, traçar todas as divisas dos sítios.
Eu vi ele escolher este lote, o primeiro, onde vivo,
E adquiri-lo definitivamente.
Eu vi seu claudicante primogênito, apaixonado pela terra,
Entrar transe de tanta felicidade.
Eu vi esse pequeno amante da Natureza fazer neste solo
Sua primeira colheita: Um pequeno feixe de lenha seca.
Eu vi minhas parceiras que encimavam o lote
Ceder lugar a uma linda plantação de algodão.
Eu vi as dificuldades para saldar as dívidas da aquisição.
Eu vi o banqueiro dizer-lhe: “Vai trabalhar Chico,
No ano que vem as coisas correm bem e você paga...”
Eu vi dois anos depois, como por encanto,
A profecia daquele Homem de negócios se concretizarem.
Eu vi chegar o último dos herdeiros da família,
Que não era fora ligado pelo sangue, mas sim pelo Amor...
Eu vi um jovem herdeiro de Cabeça Branca
Montado em seu cavalo “BAIO” me ajudar enfeitar a paisagem
E com apenas 14 anos, trabalhava tanto quanto um Homem.
Eu vi também a Irmã Única, zelosa e prestimosa
Que cuidava da casa e do caçula como dele fosse a Mãe.
Eu vi a Mãe da Família, mentora da aquisição das terras,
Que gostava mais da lida na roça,
Que dos afazeres domésticos, trabalhar de sol a sol.
Eu vi um chefe de família que nunca perdia a esperança.
As frustrações das safras creditava sempre no “ano que vem”.
Eu vi esse casal que, com grande sabedoria,
Educava usando como instrumento o Amor e nunca o castigo.
Eu vi a construção da moradia com as tábuas da velha tapera
Que não era tão velha assim, e onde tudo foi aproveitado...
Eu vi a alegria e o prazer daquele lavrador,
Como se tivesse construído para sua família um grande palácio.
Eu vi o transporte da mudança e o Primogênito
Escolher o nome de batismo daquele Reino Encantado:
“ Sítio Novo Destino”...
Eu vi o criativo e inteligente dono desta terra,
Que era engenheiro por natureza, convencer o regato
A mudar sua rota e irrigar novas terras.
Eu vi suas águas se afastarem de seu costumeiro leito,
Passar em túnel subterrâneo sob a estradinha
E serpentear o morro enfeitado de relva, árvores e mandacarus.
Eu vi sua rota passar aos meus pés e seguir seu destino
Em direção a um receptador maior e depois ao infinito...
Eu vi a terra irrigada agora produzir fartura de alimento
Sem depender dos caprichos da Natureza em fornecer chuva.
Eu vi passar pela estradinha os convidados para o casamento
Daquele herdeiro esforçado e inteligente de Cabeça Branca.
Eu vi no mesmo dia o Primogênito encontrar sua Amada
Que seria definitiva e deixaria uma grande contribuição
Para a perpetuação da espécie...
E vi sua alegria ao comunicar à família
Que se tornara Educador.
Eu vi a alegria e a felicidade inundarem o vale
Com a chegada da primeira Neta, depois a segunda...
Eu vi o impossível acontecer:
A felicidade e alegria que pareciam ser infinitas
Aumentarem com a chegada do primeiro Neto...
Eu vi o País mergulhar numa ditadura militar
Auto-denominando “restauração dos princípios democráticos”
Onde o Povo sequer escolhia seus governantes.
Eu vi... O surgimento das crendices populares de que
A “casca do Ipê Roxo” era a panacéia para todas as doenças.
E de concreto só ficou uma cicatriz que carrego até hoje.
Eu vi a Irmã Única unir pelos laços do amor,
Ao seu, também jovem namorado e torná-lo
Parceiro até o final de seus tempos.
Eu vi aquele lavrador transformar as tabuas
De uma velha tapera em uma construção, que parecia
Uma casinha de boneca saída de um conto de fadas.
Eu vi a felicidade daquele casal receber sua primeira moradia...
Eu vi... Para alegria de todos,
A chegada daquela que é sua proposta de eternidade,
Uma linda menina de cabelos louros com a beleza
E a singela pureza de uma boneca de milho.
E depois outra, que era miúda em estatura
Mas enorme em vivacidade e Inteligência.
E depois um menino com um lindo sorriso,
Que com ele conseguia disfarçar todas as sua artes.
E para encerrar sua árdua tarefa de Mãe,
A chegada uma linda boneca morena...
Eu vi o primogênito deixar a função de Educador
E ir para cidade grande continuar seus estudos.
Eu vi a alegria da Mãe da Família
Contar para todos a mensagem recebida pelo Rádio,
De onde tirava os custeios para seus estudos,
Dizer que estava tudo bem, mas com saudades.
Eu vi que a alegria da formatura do Primogênito
Foi ofuscada pela saída do herdeiro de Cabeça Branca
Em direção à cidade grande em busca de uma vida melhor.
Eu vi que este Vale era pequeno
Para a exuberância de sua inteligência e dedicação ao trabalho.
Eu vi a enorme tristeza de todos, em lagrimas,
Assistirem a ele, as malas e sua riqueza, as três crianças,
Desaparecerem na última curva da estrada.
Eu vi o Primogênito dizer, numa tentativa de consolo aos avós:
“... um dia vamos ter saudades das coisas boas
E também das ruins...
Das boas pelo prazer que nos deram,
E das ruins pelo prazer de saber que pudemos superá-las...”
Eu vi o Primogênito e seu diploma de educador,
Diante de todas as dificuldades,
Sair pelo mundo à procura de trabalho, como Apóstolo,
Na nobre tarefa de Educar.
Eu vi sua imensa alegria de comunicar aos Pais
Que iria para terras distantes, que na Noroeste iria morar.
Que levaria uma muda de Flor onde numa Ilha iria plantar.
De mãos dadas com sua Flor em direção ao Noroeste,
Caminharam, e cercados de água por todos o lados
Iniciaram o jardim num pequeno, mas lindo palácio
Eu via a felicidade daquele alegre distribuidor de letras
Vir mostrar seu primeiro carro.
Eu vi, devido a precariedade da estradinha,
Sair por ela e amparado pelo lavrador, ao meu pé passar.
Eu vi, a volta do herdeiro de Cabeça Branca mais todos os seus
Juntar-se aos demais e comemorar as datas
De Confraternização do Mundo Ocidental Cristão.
Eu vi a felicidade inundar aquele Reino Encantado,
Ao receber um lacônico telegrama: “ Maria Rita chegou!”
Era a chegada da primeira flor, uma Rosa,
Ainda em botão, enfeitar o fantástico Jardim...
Eu vi a alegria do herdeiro de Cabeça Branca ao encerrar
Sua tarefa na perpetuação da espécie,
Trazer uma pequena criatura que herdou de seu Pai
O amor e a dedicação ao trabalho...
Eu vi, pouco depois, todos entrarem em delírio
Ao receberem a visita de um frágil mas lindo botão...
Eu vi aquele cultor de conhecimento vir buscar
A Mãe da Família para dar aulas de Amor Maternal
E ajudar na labuta do jardim,
Que não parava de crescer e agora recebia
Um mimoso e lindo Jasmim...
E o Reino Encantado, com humildade crescia...
Eu vi a chegada, pelas mãos do primogênito,
De um barulhento ajudante na lavragem da terra.
O Reino Encantado nunca mais foi o mesmo.
A produção não parava de crescer... Mas, Eu vi...
Numa manhã de Julho, nos meados da década de 70,
Um espesso manto branco cobrir o Vale,
E a Natureza a exigir que tudo recomeçasse do princípio,
E não podendo ser diferente, assim foi feito...
Eu vi o Vale entrar em desespero
Diante do acidente daquele Lavrador,
Ao operar a máquina barulhenta.
Eu vi passar ao meus pé o vizinho Tião Batista,
Levando para o hospital o amigo considerado morto.
Eu vi o desespero da Família ir atrás dos recursos
Que a Medicina de então podia oferecer.
Eu vi a alegria de todos diante do sucesso da cirurgia.
Eu vi o reconhecimento e a gratidão ao Médico
Que fez seu trabalho, de acordo com a posse da família,
E não conforme às exigências financeiras
Que o mercado da Medicina estabelecia.
Eu vi a alegria do Vale receber de volta
O ilustre acidentado, chegando num DKW – VEMAG de cor vinho,
Trazidos pelos irmãos de Amor, João Carlos e Nina.
A vida tinha vencido a incrível batalha...
Pouco tempo depois, uma semana antes de seu aniversário,
O Lavrador recebeu de presente , uma boneca...
E o Vale mais uma vez se encheu de alegria e felicidade...
Eu vi... Já no final da década,
Mais uma vez, o Vale entrar em clima de festa.
Era o Herdeiro unido à família pelo Amor,
Trazer para junto de si uma companheira
Que iria ajudá-lo na proposta da perpetuação da espécie.
E o primogênito aproveitando o eufórico clima
Lançou a semente da última flor de seu Jardim,
Que meses depois, como uma Estrela Cadente,
Riscando a escuridão da noite,
Veio tornar o Jardim mais alegre e mais belo.
Eu vi o Primogênito, cansado das injustiças
Praticadas contra a Educação, voltar ás origens
E tentar a sorte na labuta com a terra.
Sabiamente não abandonou por completo seu sacerdócio.
E como a Educação não tem o “privilégio”
De ser a única injustiçada, voltou à labuta exclusiva
Com as letras, sua antiga e castigada paixão.
Eu vi... O Vale continuar a ser feliz e alegre.
Vi a chegada da primeira flor no Jardim do último Herdeiro,
E depois mais um que presenteou o grande Lavrador
Recebendo como carinhosa homenagem, o seu nome.
Eu vi... O encerramento da tarefa de perpetuação da espécie
Receber um personagem que alem da beleza
Trouxe como instrumento de sobrevivência, a inteligência.
Mas obedecendo a ordem Natural do Universo
Tivemos a impressão de termos aumentada a velocidade
De nossa passagem pelo tempo.
E a árvore genealógica multiplicou seus galhos
Começando a driblar nossa memória.
A Natureza não tem a pressa
E nem os sentimentos dos humanos.
Aquele lavrador, obedecendo aos desígnios Naturais,
Deixou triste o Vale, e foi embora definitivamente...
Eu vi... Os amigos a conduzi-lo, desaparecerem
Na última curva da estrada...
Eu vi a volta do Primogênito ás suas origens.
Não veio morar no Vale, mas o visitava diariamente.
Eu vi... O primogênito passar horas numa rede,
À sombra da grande jabuticabeira e a Mãe da Família,
Junto, com seus cachorros, sentada como se tivesse a niná-lo.
Mas não havia cantigas de ninar.
Havia Causos e mais Causos que enfeitavam
De Amor e de Saudade o tranqüilo ambiente...
Eu vi... Sua saída (da Mãe da família) e sumir pela última vez
Na mesma curva da estrada, mas viva,
Acompanhada da Irmã Única que a levava
Para tratamento da já debilitada saúde.
Mas... Ela nunca mais voltou...
Eu vi... O Primogênito tomar posse deste pedaço de chão.
Eu vi... E continuei acompanhando a História.
Tudo foi se transformando e fomos tragados
Por um oceano de cana de açúcar.
Eu vi... E continuei acompanhado a História.
O primogênito deu ao seu pedaço um nome de batismo
Que já existia em seu sentimento: REINO ENCANTADO.
A primeira tarefa foi devolver a floresta que ele ajudou a tirar
Na labuta da sobrevivência de todos.
A nova floresta, nada que se compare à antiga,
Mas a natureza não tem sentimentos como os Humanos.
Construiu um pequeno lago onde os peixes nativos
Vivem como se da família fossem...
Eu vi... A Felicidade do Primogênito ao voltar de uma viagem
Onde esteve presente na entrada de sua Ultima Estrela Cadente
Na mesma órbita de um formoso asteróide
E com ele prosseguir pela imensidão da Via Láctea.
Eu vi, numa morna tardezinha de novembro
Enquanto o primogênito visitava as flores de seu jardim,
Nuvens negras do lado Norte (Roseta) vindo em minha direção.
Não me lembro que daquele lado
Tivessem vindo tempestades consideráveis.
Mas veio, e a exemplo do que fez com algumas
De minhas companheiras, me deitou, me tombou...
Nada sofri a não ser a postura fidalga e ereta
Que na entrada do REINO ENCANTADO, por décadas, ostentei...
O Primogênito ficou triste!!! Muito triste... Mas eu não...
Sei que a NATUREZA NÃO TEM SENTIMENTO... (oldack/02/08/014 – 19h07)