CAFUNGADA NO CANGOTE.

CAFUNGADA NO CANGOTE.

Isto aconteceu ali por 1969, comecinho de novembro. Eu estava com 19 anos de idade e preparava-me para viajar para Portugal, onde iria fazer a faculdade de medicina, na prestigiosa Universidade do Porto. Tudo preparado, em contagem regressiva para o embarque, reserva no tradicional navio Eugênio C, camarote para seis (era o que o meu dinheiro dava!), e um acontecimento imprevisto interrompeu meu enlevo. Era o Sr. Manuel, dono da agência de viagens Marear, responsável pela emissão de minha passagem, que me avisou com a maior naturalidade que pôde, de que meu passaporte tinha “um probleminha”, e estava retido no Departamento de Ordem Política e Social, o temido DOPS. Aquele mesmo, de triste memória, que ficava na Rua da Relação, no Rio de Janeiro, a sede considerada por muita gente como a “sucursal do inferno’. O famigerado AI 5 tinha poucos meses de vida, e fazia sobre todos nós uma sombra terrível, piorando em muito uma situação que já era preocupante. E minha partida para Portugal estava marcada para a semana seguinte, na quinta-feira! Não tinha remédio senão embarcar rapidamente para o Rio e ir ao DOPS esclarecer o que, com certeza, não passaria de um mal-entendido.

E era mesmo! Um homônimo meu, Paulo Roberto Silveira, era intensamente procurado pela polícia política, acusado de assaltos a bancos e atos terroristas. Mas meu sinistro xará era um homem de 50 anos de idade, e o delegado advertiu duramente seus comandados sobre o erro:

— Vocês são umas bestas mesmo! Não conseguem distinguir um cara perigoso, de 50 anos, sobre quem há farta informação em nossos arquivos, de um garoto babaca de 19?

Francamente, não gostei daquele elogio. Mas valeu a pena, porque saí dali muito mais rapidamente do que imaginava, com um pedido de desculpas e o meu passaporte na mão. No eu retorno a Volta Redonda, encontrei todo mundo me esperando, aliviados com o resultado daquela confusão toda. Mas agora eu tinha uma nova dívida pra saldar. Não mais com o DOPS, mas com o Exu Sete Encruzilhadas... Bizarro, né? Fazer o que, foi ideia de um querido amigo, Ernesto, meu colega também no judô (éramos ambos faixas pretas). Além de suas habilidades marciais, meu bom amigo Ernesto estava se iniciando na arte de ser um pai de santo. Então, em meu nome, mas à minha revelia (na melhor das intenções, pra me ajudar), havia se comprometido (e me comprometido, evidentemente) com aquela entidade, para que eu fosse protegido em minha demanda lá na capital, junto ao DOPS. Como tudo acabara bem, eu precisava cumprir a “minha” parte naquilo tudo e fazer uma oferenda ao tal Sete Encruzilhadas.

Eu não entendia daquelas bossas, mas lá fomos nós, Ernesto me orientando, para uma encruzilhada perfeita, com os quatro pontos cardeais bem definidos e totalmente livres. Eu estava tenso com aquilo, nunca tinha participado de nada parecido, e meu amigo aspirante a pai de santo caçoou amigavelmente de mim, mas a seguir falou sério:

— Tenha coragem, Paulo! A mesma coragem que o seu Sete Encruzilhadas lhe infundiu para enfrentar o DOPS, você precisa ter agora, nesse encontro com ele.

Então tá... Fiz das tripas coração e, ajoelhado na encruzilhada, ajudei meu amigo a abrir a toalha sobre a qual colocamos a cachaça, a galinha preta, a forofa de dendê, as velas vermelhas e pretas e fitas com as mesma cores, enquanto o seguia na entoação do ponto do Seu Sete Encruzilhadas... Coisa de arrepiar. Mas era preciso coragem, certo?

— Feche os olhos para cantar o ponto, Paulo — recomendou Ernesto — e concentre-se, para que o Exu venha aceitar a oferenda...

E lá estávamos nós, ajoelhados, os olhos fechadíssimos, eu meio assustado, mas firme, cantando o ponto do meu benfeitor, quando Ernesto anunciava:

— Ele está vindo, meu irmão — dizia ele, emocionado — está vindo para aceitar a oferenda...

Mas de repente meu pai de santo improvisado se levanta assustado e sai correndo:

— O hálito de Exu! O hálito quente de Exu! Valei-me Santa Bárbara! Socorro, Santo Guerreiro!

E saiu dali, como um raio, gritando de pavor! Na escuridão dos arredores, eu só podia ver que, atrás dele, havia um grande vulto escuro, que o perseguia a toda velocidade, assustador, correndo de quatro e uivando sinistramente na noite... Sumiram os dois e eu fiquei ali sozinho por uns quase dez minutos, sem entender muito o que estava acontecendo. Até que um deles voltou. E não era o Ernesto. Era bolinha, a cadela preta, de uns vizinhos nossos, enorme, mas mansa como um cordeiro, que havia nos seguido, sem que percebêssemos, e na hora de nossa dedicada entoação do ponto ao Sete Encruzilhadas, ajoelhados e com os olhos fechados, olhou por sobre o ombro do Ernesto, arfando e babando de gula, de olho na galinha preta e na farofa do exu. Por puro reflexo ou instinto, ela o perseguiu, quando ele correu, mas depois voltou, expectante, para o real objeto de seu interesse. Ernesto ainda demorou mais tempo pra voltar, de tanto que correu, fugindo do capeta, do exu, sei lá mais do que a sua imaginação, embalada pelo ritual e pelo entoar do ponto que ele próprio inventara de cantarmos .

Final da história: acabei embarcando sem problemas para Portugal, na data prevista, e meu caro amigo Ernesto, refeito do trote que armara sem querer para si mesmo, tornou-se finalmente um pai de santo muito respeitado em Volta Redonda, agora sem tanto medo da própria sombra, e sem confundir Exu com uma inocente, faminta e inofensiva vira-latas.